quinta-feira, 28 de março de 2024

O DIA EM QUE COMEÇAMOS A CARREGAR UMA FEDORENTA MALA SEM ALÇA , DA QUAL SÓ NOS LIVRARÍAMOS 21 ANOS DEPOIS

"Auriverde pendão de minha terra...  antes te houvessem roto
na batalha que servires a um povo de mortalha" (Castro Alves)
Eu tinha 13 anos no dia 1º de abril de 1964, verdadeira data da usurpação do poder por parte de conspiradores que a vinham tentando praticamente desde 1954.

Os pretextos que alegaram para derrubar o presidente legítimo João Goulart eram mentirosos, daí terem intitulado a quartelada de Revolução de 31 de março, embora nem fosse revolução, nem tivesse ocorrido na véspera do Dia da Mentira, mas sim no próprio.

Foi uma vã tentativa de evitarem a piada pronta. A utilização descarada de fake news por parte dos ultradireitistas vem de longe...

Puxando pela memória, só consigo me lembrar de que a TV vendia o golpe de estado em grande estilo, insuflando tamanha euforia patrioteira que os cordeirinhos faziam fila para atender ao apelo dê ouro para o bem do Brasil!.

Matronas iam orgulhosamente tirar suas alianças e oferecê-las aos salvadores da Pátria, torcendo para que as câmeras as estivessem focalizando naquele momento solene.

Desde muito cedo eu peguei bronca dessas situações em que a multidão se move segundo uma coreografia traçada por alguém acima dela, com cada pessoa tanto esforçando-se para representar tão bem seu papel... que acaba parecendo, isto sim, artificial e canhestra.
De paradas de 7 de setembro a procissões, eu não suportava a falsa uniformidade. Gostava de ver cada indivíduo sendo ele próprio, igual a todos e diferente de todos ao mesmo tempo.

No mais, dê ouro para quê? Para a compra de instrumentos de tortura?! Era mais do que previsível e foi o que acabou acontecendo. Ingenuidade demais não cheira bem.

E, na preparação do clima para a sedição, houvera a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade. Aquelas senhoras embonecadas e aqueles senhores engravatados me pareceram sumamente ridículos.

Aqui cabe uma explicação: duas fortes influências me indispunham contra o patético desfile daquela classe média abasta(rda)da, que detestava tanto o comunismo quanto o samba, talvez porque fosse ruim da cabeça e doente do pé.

Minha família era kardecista e, quando eu tinha oito, nove anos, me levava num centro espírita cujo orador falava muito bem... e era anticatólico visceral.
Já dizia P. T. Barnum: nasce um otário a cada minuto
A cada semana recriminava a riqueza e a falta de caridade da Igreja, contrastando-a com a miséria do seu rebanho. Cansava de repetir que Cristo expulsara os vendilhões do templo, mas estes estavam todos encastelados no Vaticano.

Vai daí que, cabeça feita por esse devoto tardio do cristianismo das catacumbas, eu jamais poderia aplaudir um movimento de católicos opulentos.

E devorara a obra infantil de Monteiro Lobato inteira. Com ele aprendera a prezar a simplicidade, desprezando a ostentação e o luxo; a respeitar os sábios e artistas, de preferência aos ganhadores de dinheiro.

Mas, afora essa rejeição, digamos,  estética, eu não tinha opinião sobre a tal da  Redentora.

Escutava meu avô dizendo que, se viesse o comunismo, ele teria de dividir sua casa com uma família de baianos (o termo pejorativo com que os paulistas botavam num mesmo saco a maioria dos excluídos da época, predominantemente nordestinos).

Registrava a informação, que me parecia um tanto fantasiosa, mas não tinha certeza de que Vovô estivesse errado.

O certo é que os grandes acontecimentos nacionais me interessavam muito pouco, pois pertenciam à realidade ainda distante do mundo adulto.
Marcha da Família, 1964: já vi enterros mais animados 

Na canção em que Caetano descreveu sua partida de Santo Amaro da Purificação para tentar a sorte na cidade grande, ele disse que 
"no dia que eu vim-me embora/ não teve nada de mais", afora um detalhe prosaico: "sentia apenas que a mala/ de couro que eu carregava/ embora estando forrada/ fedia, cheirava mal".

Da mesma forma, o dia que mudou todo meu futuro – seja o 31 de março do calendário dos déspotas, seja o 1º de abril em que a mentira tomou conta da Nação – não teve nada de mais.

Gostaria de poder afirmar que, logo no primeiro momento, percebi a tragédia que se abatera sobre nós: estávamos começando a carregar uma fedorenta mala sem alça, da qual só nos livraríamos 21 intermináveis anos depois.

Mas, seria abusar da licença poética e eu não minto, nem para tornar mais charmosas as minhas crônicas.

Os mentirosos eram os outros. Os fardados, as embonecadas e os engravatados. (por Celso Lungaretti)
"Pega na mentira, pega na mentira / Corta o rabo
dela, pisa em cima / Bate nela, pega na mentira"

terça-feira, 26 de março de 2024

FILME DO DIA: "O VALENTE TREME-TREME". QUALQUER SEMELHANÇA COM CERTO MICO METIDO A MITO NÃO É MERA COINCIDÊNCIA.

Só no Brasil alguém consegue fingir-se de líder machão ultradireitista apesar de:
— aceitar pedir baixa do Exército para não ser preso, ao invés de defender-se até o fim das acusações que lhe faziam;
— entregar arma e moto docilmente a bandidos insignificantes;
— convocar seus seguidores para um golpe de estado no Dia da Pátria de 2021, amarelar e desistir, indo pedir colinho para um ex-presidente;
— convocar seus seguidores para um golpe de estado no Dia da Pátria de 2022, amarelar e novamente desistir;
— comandar todos os preparativos de um golpe de estado para derrubar o sucessor e depois ir pedir colinho para o Pateta na Disneylândia, na esperança de não ser processado em caso de fracasso;
— entrar em pânico após entregar passaporte às autoridades e correr a abrigar-se numa embaixada ultradireitista.

O ditador Geisel tinha razão ao qualificá-lo de "mau militar". Agora, como civil, não para de um golpista bundão. Não foi assim que o Hitler ensinou... (CL)


Esta comédia chinfrim estadunidense de 1948 entrou aqui só
para completar a piada. Foi dirigida por Norman Z. McLeod.

segunda-feira, 25 de março de 2024

INDICADOS POR LULA, ZANIN E DINO AJUDAM STF A FERRAR OS APOSENTADOS

 Na última quinta-feira, dia 21/03, o STF, seguindo apelo do governo Lula, cometeu um dos maiores ataques aos aposentados brasileiros que se tem notícia após derrubar a chamada "revisão da vida toda", sistema de cálculo de aposentadorias que permitia o aumento do valor devido aos pensionistas que contribuíam ao INSS décadas atrás. 

O dispositivo vinha sendo questionado há décadas pela União sob o argumento de sua incompatibilidade com a constituição e em defesa do sacrossanto ajuste fiscal. Sua desconsideração é verdadeira forma de saqueio dos pensionistas, pois passa a desconsiderar as contribuições efetivas realizadas por eles ao longo de sua vida em prol de uma contagem desvantajosa. 

A "revisão" foi derrubada com os votos favoráveis de Cristiano Zanin, Flávio Dino, Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Roberto Barroso e Nunes Marques, enquanto Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Cármen Lúcia votaram contra. Ou seja, os dois novos indicados de Lula, Zanin e Dino, votaram contra os trabalhadores sem a menor cerimônia, mostrando bem como de fato consideram os trabalhadores brasileiros. 

Jorge Messias, advogado-geral da União, outro escolhido por Lula, comemorou o resultado em prol, segundo ele, da integridade das contas públicas e equilíbrio financeiro da Previdência. Sim, integridade e equilíbrio, às custas de deixar milhões de aposentados mais pobres! 

Lula, assim, mostra mais uma vez a real faceta de seu governo, pois, além de querer abolir as leis trabalhistas, também prejudica aposentados subtraindo deles parte considerável de suas aposentadorias. (por David Coelho) 





domingo, 24 de março de 2024

ELUCIDAÇÃO DO CRIME DE MARIELLE FRANCO MOSTRA A FALÊNCIA DAS INSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

 


Estaremos diante da conclusão do caso do assassinato de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes? O crime, cometido em 2018, fez 6 anos neste março e parecia não ser solúvel, mesmo após a prisão do executor, o ex-policial militar do Rio de Janeiro, Ronnie Lessa, ainda pairavam dúvidas sobre qual a motivação para o crime e quem teriam sido os mandates. 

De acordo com investigações da Polícia Federal, os mandantes teriam sido os irmãos Chiquinho Brazão, deputado federal, e Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. O motivo? Marielle estaria atrapalhando os interesses da milícia, da qual os irmão fariam parte, em questões fundiárias na cidade do Rio de Janeiro. A milícia há tempos vem ocupando e revendendo loteamentos em várias regiões da capital, inclusive manobrando para aprovar legislações na Câmera Municipal em favor de facilitar tal processo e a vereadora teria se tornado um empecilho desse processo. 

Ou seja, uma questão de disputa fundiária estaria por trás do assassinato, o que não é uma novidade no Brasil, pois é extremamente comum a morte de militantes e políticos que defendem o direito de sem terras, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, etc. Tais assassinatos são mais comuns nas regiões rurais, mas não raro também acontecem em regiões urbanas. No caso Marielle, a diferença está em que o agrupamento responsável pela disputa fundiária é uma organização abertamente criminosa e não um ruralista ou uma empreiteira. 

Chiquinho, Rivaldo e Domingos, os acusados

O que mostra também a imbricação no capitalismo brasileiro entre o capital "legalizado" e agrupamentos criminosos, como já foi possível de ser visualizado na questão dos garimpeiros. A reprimarização econômica do Brasil acelera a busca pela renda da terra - agronegócio, produtos minerais e especulação imobiliária - e faz entrar em cena grupos criminais. 

Também chama a atenção nas investigações da Polícia Federal o grau de apodrecimento das instituições. Chiquinho é um deputado federal e seu irmão, Domingos, é conselheiro de contas, responsável por fiscalizar os gastos do governo estadual do Rio de Janeiro. Ambos são extremamente influentes, indo do nível municipal até o federal. Mas, certamente, o maior exemplo da podridão institucional é a do delegado Rivaldo Barbosa, à época do crime chefe da Polícia Civil do Estado do Rio, que teria recebido propina de 400 mil reais para embaraçar as investigações sobre o assassinato. 

E, de fato, durante anos as investigações ficaram travadas. A PF diz ter provas indiscutíveis que Rivaldo Barbosa atuava, junto a outros delegados e policiais, para impedir as investigações, destruir provas, colocar pistas falsas, apresentar falsas testemunhas e falsos acusados, tudo para impedir a elucidação do caso. Para coroar, Barbosa ainda seria de confiança da família de Marielle e dos políticos do PSOL, sobretudo de Marcelo Freixo

Ronnie Lessa, o assassino

Ou seja, mais uma vez a esquerda erra na crença no Estado e seus aparelhos policiais. A polícia deve sempre ser usada de forma crítica, pois é um mal necessário na sociedade de classes, mas nunca se pode esquecer que ela é uma instituição repressiva da burguesia e extremamente permeável à corrupção. 

Esperamos que finalmente estejamos diante da solução definitiva desse crime bárbaro. A memória de Marielle ficará para sempre gravado na história brasileira como mais uma lutadora que se levantou contra os poderosos deste país! (por David Coelho) 


sexta-feira, 22 de março de 2024

SER OU NÃO SER, EIS A QUESTÃO HOJE COLOCADA DIANTE DA CRISE CAPITALISTA!


 N
a célebre frase de Hamlet, “ser ou não ser? Eis a questão", da clássica peça A tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, o grande dramaturgo, poeta e ator inglês expressa metaforicamente a dúvida hamleteana entre a honra da morte heroica pela lança enfurecida na luta ou a covardia da aceitação passiva dos infortúnios da injustiça, que representa a desonra, que é outro tipo de morte, pois em vida. 

A metáfora shakespeareana, criada no início do período de transição europeia do feudalismo para o capitalismo na virada do século 16 para o 17, é perfeitamente adaptável à situação deste início de século quando se esgota a relação social capitalista por seus próprios fundamentos exigindo de nós o enfrentamento de tal situação. 

É evidente que enfrentamos situações sociais negativas históricas que se agravam e outras que vêm surgindo, convergindo para um quadro de insustentabilidade e de barbárie. 

Desemprego estrutural é o sintoma mais elucidativo da debacle capitalista, que se nutre do trabalho abstrato produtor de valor pelos trabalhadores para existir, e que persiste e se acentua diante da irreversibilidade da era da terceira revolução industrial da microeletrônica, causadora  da obsolescência, em maior parte, do dito cujo. 

A era da cibernética e seus amplos e variados campos de atuação, que vão desde a comunicação instantânea via satélite, passando pela computação que tudo calcula e virtualiza em tempo real, até a robotização que substitui o homem na produção de mercadorias, decretou o que Marx previu nos “Grundrisse”: a implosão dessa forma de relação social.


 
O sujeito revolucionário deixaria de ser o proletariado, por simples obsolescência de sua existência majoritária e poder de pressão, para dar lugar a um impasse interno, endógeno ao próprio capitalismo, cujo sujeito revolucionário é a própria natureza da relação social diante do processo da dialética do movimento social.  

Isto é Marx dizendo que não era marxista tradicional, do movimento operário, de modo autocrítico, como de fato afirmou ao compreender a possibilidade de desvirtuamento empírico - por má compreensão ou comodidade antirrevolucionária - de sua doutrina, o que efetivamente terminou por acontecer quando se endeusou o trabalho e o trabalhador, quando é necessário superar esas duas categorias capitalistas, e não conservá-las.  

Aos dissabores da crise econômica ora em curso e do incremento das guerras, repetindo-se o que ocorreu na sequência da segunda revolução industrial fordista com as duas grandes guerras mundiais - de 1914 a 1918 e 1939 a 1945 - agora com potencial de destruição mundial da vida pela hecatombe nuclear, vem também o aquecimento global como decorrência da massiva emissão de gás carbônico na atmosfera, fato que antes não havia sido percebido por todos os protagonistas da cena capitalista.  

Mesmo diante da emissão poluente e devastadora do gás carbônico na atmosfera, muitos países, inclusive o Brasil, continuam a descobrir petróleo e se jactar de suas riquezas advindas da produção e refino para comercialização, o que bem demonstra a insanidade ditatorial e suicida da lógica do capital sobre a sociedade e seus governantes.  

Juntam-se ainda à crise do valor e ecológica as crises política, social, demográfica - com a migração populacional por pobreza crescente e fenômenos climáticos -, distúrbios psíquicos - aumentam os suicídios e dependências às drogas - e epistêmicos.    

Mas, apesar das evidências, o drama hamletiano persiste. 

A questão de fundo tem conteúdo epistemológico, relacionado ao desconhecimento sobre a natureza das relações sociais dominadas pelo espectro político vertical naturalizado como indispensável.   

Há uma crença naturalizada de que somente se poder fazer alguma coisa com a interveniência do dinheiro, como se houvesse alguma molécula dele inserida nos objetos transformados em mercadorias. Esquece-se que o dinheiro não é nem matéria e nem músculos e cérebros, únicos pré-requisitos para a materialização de um objeto ou uma ação de serviço, mas é apenas uma relação social estabelecida pelos escravistas desde a Grécia antiga e que agora encontra o seu ocaso existencial. 

O dinheiro, a abstração em si, como única mercadoria que não tem valor de uso, mas é capaz de comprar todas as outras, é o instrumento usado pela escravista e oportunista - apenas usa a necessidade de consumo de mercadorias para existir, sem intenção social virtuosa - sociedade do valor econômico como sua representação numérica virtual preponderante, quase único, para a obtenção daquilo de que necessitamos materialmente. 

A definição ora firmada é bem mais elucidativa do que aquela dos compêndios de economia, que apenas superficialmente definem a sua função e administração, sem ir ao âmago de sua essência negativa inconfessada. 

É por isso que comumente se confunde valor econômico, algo abstrato, intangível, fruto de uma convenção social escravista e destinada à mensuração do tempo-trabalho como seu critério de quantificação para as trocas de mercadorias - com valor de uso e de troca, a partir da mensuração do tempo-valor médio do trabalho - no mercado, com outros tipos de valores, reais, virtuosos e incomensuráveis, como a capacidade de satisfação de consumo de um objeto natural, o talento para determinadas atividades, ou ainda virtudes como generosidade, solidariedade, saber, beleza física, simpatia, saúde, etc., etc., etc.  

 Confunde-se o meio dinheiro, mera representação numérica do valor, como se fosse um fim em si, e o medo de perdê-lo como tal, fato que agora é impulsionado pela sua incapacidade de autorreprodução válida, advinda da produção de mercadorias, cria a paranoia da sua essencialidade. 

 Estabelece-se, então, a incerteza sobre o que se pode colocar em seu lugar, sem se saber que não há nada para se colocar no seu lugar, mas simplesmente superar a sua intervenção negativa e deletéria e se recriar a partilha, agora sob controle de quem a produz coletivamente pelos meios tecnológicos de produção e saberes eletrônicos tão desenvolvidos. 

Algo assim como inverter o atual papel da cibernética, deixando de criar os atuais impasses de acesso de todos à produção social indebitamente apropriada pelo capital, para dar azo à satisfação plena de consumo social a partir de seus usos sem a intermediação deletéria do valor.         

Com o desenvolvimento do saber tecnológico nos vários campos do conhecimento e, principalmente, com o advento da terceira revolução industrial cibernética, que provoca o desemprego estrutural e a dessubstancialização vertiginosa do valor, inviabiliza-se a vida sob o critério de sua forma de relação social. 

Mas a cibernética, antes de ser um problema nas nossas vidas, pode, deve ser e é um presságio de novos e venturosos tempos impelindo-nos à consecução da necessária opção pelo implemento de medidas que eliminem aquilo que somente está permeando as nossas cabeças mal aculturadas numa forma de relação social que sempre foi ruim para a grande maioria das pessoas e que agora se inviabiliza de modo socialmente impositivo e destrutivo, apesar da direita querer a sua permanência e até a volta de pressupostos de incivilidade que se supunham já ultrapassados. 

Está diante de nós a possibilidade mais auspiciosa da história da humanidade: livrarmo-nos das amarras do dinheiro e descortinarmos um mundo de possibilidades do fazer fora da famigerada viabilidade econômica, que hoje impossibilita muita coisa boa de ser feita, menos as máquinas de guerra que geram valor à economia capitalista via indústria bélica e se destinam à destruição da espécie humana e à manutenção manu militare da extração e venda de petróleo que emite gás carbônico aquecendo o planeta numa prova inconteste da ilogia suicida capitalista.  

Sermos revolucionários e abrirmos a perspectiva da vida plena ou nos acovardarmos diante da morte inglória e real, eis a questão! (por Dalton Rosado)

quinta-feira, 21 de março de 2024

A GÊNESE JURÍDICA DO GOLPISMO BOLSONARISTA

 


A
inda me lembro do jurista Ives Gandra, entrevistado pelo UOL, afirmando com todo peso de seu prestígio e conhecimento que a minuta golpista "é um documento que não tem nenhuma validade jurídica. Até porque é um papel que cuida de uma situação absurdamente impossível".  Que papel era esse encontrado na casa do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro Anderson Torres? Estávamos no dia 13 de janeiro de 2023, cinco dias depois dos ataques pelos fanáticos bolsonaristas na praça dos Três Poderes..

Ora, o papel não era uma folha solta, destinada a ser destruída na trituradora, mas algo bem elaborado com preâmbulo e artigos bem detalhados de um documento, era uma minuta de decreto do golpe - como assim passou a ser chamado - e estava bem protegido dentro de um pasta azul de couro decorada, na capa, com o brasão da República, como mostrou o ex-ministro da Justiça, Flávio Dino.

Entretanto, embora o jurista Ives Gandra minimizasse, naquele dia, a importância do achado pela Polícia Federal e demonstrasse desconhecimento do seu teor, diante dos jornalistas Fabíola Cidral, Tales Faria e Madeleine Lacsko, veio dele a inspiração para a criação original daquele papel ou minuta do golpe. Nasceu, portanto, de uma interpretação jurídica errônea, partidária ou comprometida, cada um interpreta como quiser, de Ives Gandra do artigo 142 da Constituição, o germe daquilo que seria capaz de justificar um golpe de Estado.

Ives Gandra

Na identificação do itinerário ou roteiro da tentativa de golpe ocorrida no Brasil, deve-se retornar ao seu ponto de partida e recorrer à essa interpretação de Yves Gandra publicada no Consultor Jurídico de 28 de maio de 2020, a qual diz: no caso "de um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, naquele ponto, a lei e a ordem, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante". Esse foi o ponto zero, a justificativa jurídica inicial necessária à elaboração da "minuta do golpe".

Se nos dias de hoje, a OAB, Ordem dos Advogados do Brasil, tem sido criticada pela imprensa por seu silêncio, diante da confirmação por altas patentes do Exército e vídeo tornado público, confirmando as intenções golpistas do ex-presidente, é importante ressaltar a reação imediata da OAB, em 2020, apenas cinco dias (2 de junho) depois da publicação do parecer jurídico de Ives Gandra.

No seu longo parecer, amplamente divulgado, a OAB deixou claro que a "Constituição Federal não confere às Forças Armadas a atribuição de intervir nos conflitos entre os Poderes em suposta defesa dos valores constitucionais. Falar em um 'Poder Moderador' exercido pelas Forças Armadas não apenas é demonstração de uma hermenêutica enviesada, como também é um argumento sem qualquer lastro histórico".

Nessa análise feita pela OAB do artigo 142, artigo utilizado amplamente pelos bolsonaristas para justificar uma intervenção militar, aparecia um pormenor bastante revelador, também constante do noticiário da CNN Brasil sobre a questão. Do relato da OAB, constava uma citação feita pelo então presidente Bolsonaro, segundo a qual o artigo 142 permitia pedir uma intervenção militar para "restabelecer a ordem no Brasil". Ora, essa citação tinha uma data: foi pronunciada na reunião ministerial  de 22 de abril de 2020.

Golpismo constitucional?

Ou seja, quase um mês antes do parecer jurídico de Ives Gandra, publicado no Conjur. E surge, então, uma pergunta difícil de evitar: a interpretação jurídica do artigo 142 por Ives Gandra, propícia à justificação de uma intervenção militar, já era do conhecimento de Bolsonaro, antes de ser publicada?

E uma coincidência: nesse mesmo dia 2 de junho de 2020, no qual a OAB rejeitava sua interpretação, o jurista Ives Gandra, talvez ainda sem saber da reação da OAB, dava uma entrevista à CNN dizendo que a Constituição prevê o uso das Forças Armadas como medida "extrema e pontual para dirimir uma deficiência dos Poderes", embora afirmasse que, naquele momento, "não havia nenhum risco de ruptura". Nessa entrevista, Gandra ainda afirmava que, no caso do Executivo ou Legislativo se sentissem sufocados pelo Judiciário, não se poderia recorrer ao próprio Judiciário, fazendo-se necessária a moderação.

Ninguém ignora que, já no começo do seu governo, Jair Bolsonaro, procurava criar junto às suas bases, misto de neopentecostalismo fundamentalista com uma extrema direita negacionista, a possibilidade de uma ruptura constitucional.

Às vésperas do 7 de setembro de 2021, o cientista político Christian Lynch, professor de sociologia e doutor em ciência política, sintetizou, numa entrevista à BBC Brasil, essa situação: "ele (Bolsonaro)  excita a base radical e, ao mesmo tempo, incute nos inimigos a crença de que ele é capaz de dar o golpe".

Nessa altura, a interpretação do artigo 142 por Ives Gandra já havia sido encampada pelos bolsonaristas e o recurso ao seu uso, com autorização ou não do jurista, já fazia seu caminho nas redes sociais e era um dos principais temas nas manifestações bolsonaristas pró-golpe, se tornando a palavra de ordem nos acampamentos junto aos quartéis. Diante da derrota eleitoral de Bolsonaro, seus seguidores, trajando as cores verde e amarela ou enrolados na bandeira nacional, pediam a intervenção das Forças Armadas, a pretexto de uma fraude eleitoral não comprovada, exigindo aos gritos a aplicação do citado artigo.

Gente simples, muitos facilmente influenciados por seus pastores locais, provavelmente nunca tenham lido, e se lessem não entenderiam, o texto do tão citado artigo 142, mas por fidelidade à interpretação enviesada desse artigo, no dizer da OAB em 2020, acabaram, uns mais ousados, por praticar atos violentos no dia 12 de dezembro de 2022; outro, ainda mais fanatizado, tentou explodir uma bomba nos arredores do aeroporto de Brasília, e mais de um milhar depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília. (por Rui Martins) 

terça-feira, 19 de março de 2024

GOVERNO LULA QUER ABOLIR AS LEIS TRABALHISTAS

 

Jorge Luiz Souto Maior
O Projeto de Lei das Plataformas de Transporte proposto semana passada pelo governo federal – com seu contexto específico – consegue ser ainda pior do que a contrarreforma trabalhista de 2017. É assim que precisamos compreender a proposta de regulação da atividade de motoristas contratados por empresas que operam seu negócio por intermédio de plataformas digitais. Na verdade, trata-se do pior momento da história dos direitos trabalhistas no Brasil.

O evento festivo da assinatura do PL, então, foi um show de horrores, forjado a partir de alegorias artificialmente propostas para criar uma realidade paralela. Aliás, bem ao estilo do dito “trabalho virtual”. Uma explicitação de autêntico negacionismo, vindo daqueles que, justamente, se apresentaram como um contraponto ao processo de bestialização vivenciado de 2018 a 2022.

Desde o início do ano passado, com presença ativa do governo, vinham sendo feitas discussões entre representações dos motoristas e das empresas que exploram sua força de trabalho. A proposta das empresas, desde o início, era a regulação precarizante: chamar de autônomos seus empregados; permitir que estes trabalhassem em limite - inconstitucional, é bom frisar - de 12h diárias!; e que se mantivesse um sistema de controle das atividades dos motoristas, com permissivos punitivos, inclusive. E qual o teor do texto do PL apresentado, com pompa e circunstância, pelo governo? Exatamente o que as empresas propuseram desde o início.

O texto não reflete, portanto, diálogo e estudos para enfrentamento de uma questão que seria promovida pela inserção da nova tecnologia no mundo do trabalho. Considerando os dados concretos, refletidos no histórico e no resultado final do PL, trata-se, isto sim, de mera capitulação!

Em sentido diametralmente oposto ao que vem sendo realizado, em termos de regulação deste tipo de trabalho, o PL, no entanto, foi apresentado como a melhor proposta possível…Mas isto, evidentemente, apenas para os tomadores do trabalho, ou seja, para os capitalistas!

O governo trabalhista capitula, cai de joelhos, e defende, explicitamente, os ideais dos patrões, ou, mais precisamente, do capital estrangeiro, em seu propósito de auferir grandes taxas de lucro por meio da exploração de um trabalho sem proteção social e poder de reivindicação. A leitura do texto causa indignação e revolta!

Foi a tarde da consagração da maior derrota da classe trabalhadora brasileira, mesmo que o PL, caso sejamos tomados por uma hecatombe, não seja aprovado no Congresso Nacional. Neste aspecto, a fala do Presidente da República é plenamente verdadeira. O evento foi histórico. Ele e seu governo entrarão para a história como os agentes que apresentaram e defenderam, de forma convicta, uma lei com potencial para destruir completamente o aparato jurídico de proteção dos trabalhadores e das trabalhadoras, ao qual se denomina Direito do Trabalho. Parece exagero? Pois bem, vamos lá.

A base das decisões que vêm sendo proferidas nas reclamações constitucionais propostas por essas mesmas empresas é a de que não são elas que se relacionam com os motoristas e sim o aplicativo; ou uma modalidade de contratação por meio de plataforma digital. Assim, por este passe de mágica, elas não se integrariam à figura do empregador. E o art. 3º do PL acolhe exatamente essa fantasia, dizendo que o motorista, “para fins trabalhistas”, ostenta a condição jurídica de um “trabalhador autônomo por plataforma”.

E não só!

Ao tratar desse trabalho como autônomo, o governo acaba de algum modo fazendo coro ao discurso de que tais relações devem ser submetidas à justiça comum. Contribui, portanto, para o movimento de esvaziamento da competência material da Justiça do Trabalho.

O PL já inicia referindo tratar de relação de trabalho “intermediada” por “empresas operadoras de aplicativos de transporte”. Mas não há intermediação. Ora, a empresa admite, pois aceita ou não o cadastro de quem se candidata ao trabalho; assalaria, estabelecendo, inclusive, o valor do trabalho; e dirige a atividade, pois fixa o modo como o trabalho será prestado.  Além disso, assume os riscos do empreendimento, pois é a empresa que contratamos, quando precisamos do transporte de coisas ou de pessoas.

Há referência, também no art. 3º, à “plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos em que se conectará ao aplicativo”. No entanto, essa condição já existe em outras relações de trabalho e não guarda relação alguma com autonomia ou subordinação. É a mesma condição de quem realiza teletrabalho, por exemplo. A suposta liberdade não altera os moldes da exploração. É apenas o reconhecimento de uma característica desse vínculo específico e que, na prática, nem se realiza. E o mais importante: não constitui reconhecimento de direito algum, pois essa possibilidade de trabalhar em horários variáveis é condicionada - com ou sem a aprovação dessa lei - às tarifas praticadas pela empresa, à quantidade de motoristas atuando na mesma região, às características do lugar em que o trabalho está sendo realizado. Então, sequer essa condição é efetivamente expressão da liberdade de quem está vendendo sua força de trabalho.

A ausência de exclusividade também não é direito reconhecido por essa legislação. Em lugar algum na legislação trabalhista existe tal exigência para a formação de um vínculo de emprego. Do mesmo modo, a possibilidade de representação sindical é direito de todas as pessoas que vivem do trabalho, sendo desnecessária lei que a refira.

O §2º do artigo 3º impressiona. Refere que o “período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar doze horas diárias”. 12 horas!!! 12 horas, todos os dias! Isso, apesar da Convenção 01 da OIT, de 1919, fixar o máximo de 8 horas de trabalho por dia. Apesar de o Art. 7º da Constituição fixar como direito “dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” “XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias”. Um retrocesso inaceitável.

Ainda que estivéssemos diante de um contrato formulado a partir dos parâmetros do direito, não teríamos como sustentar a possibilidade de uma lei que contraria o limite máximo estabelecido por um dispositivo constitucional e que, nitidamente, fere direitos fundamentais. Não há como sustentar, juridicamente, a existência de um grupo de pessoas para as quais os direitos fundamentais e a Constituição não tenham validade.

O art. 5º é igualmente assustador. Estabelece a possibilidade de que as empresas operadoras de aplicativos adotem “normas e medidas para manter a qualidade dos serviços prestados por intermédio da plataforma, inclusive suspensões, bloqueios e exclusões”. Punição, no melhor estilo do que a linguagem, à época do capitalismo industrial, chamava de “gancho”. Algo que sequer a CLT prevê: a possibilidade de punir quem depende do trabalho para sobreviver. Nada pode representar melhor o quanto as relações de trabalho no Brasil seguem atravessadas por uma racionalidade escravista, que não vê limite à lógica da exploração e da precarização do trabalho.

Criaram a figura do trabalhador autônomo com direito de ser punido por aquele que não é seu patrão e que diz que não é seu patrão porque o trabalhador é livre!!! Dá até para entender a comemoração: precisa ter muita criatividade e inventividade para se chegar a uma tal formulação; ou muito cinismo!

A questão é que agora a proposta de precarização vem assinada por um ex-líder sindical, operário, cuja carreira política sustentou-se em seu compromisso com a classe trabalhadora.

O projeto estabelece, ainda, o direito da tomadora do trabalho de utilizar “sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e dos trajetos realizados”, ou seja, controle da jornada, e “sistemas de avaliação de trabalhadores e de usuários”, ou seja, metas para a extração de mais-valia. Ainda, podem oferecer “cursos ou treinamentos”, em óbvio direcionamento da atividade. Tudo, sem que se “configure relação de emprego nos termos do disposto na Consolidação das Leis do Trabalho”. Parece deboche.

Aliás, o art. 6º dispõe que a empresa poderá excluir unilateralmente o trabalhador da plataforma nas “hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma, garantido o direito de defesa”. Daí a comparação com a contrarreforma de 2017. Estamos diante de uma proposta de lei empresarial.

Mas dirão aqueles que seguem defendendo cegamente a postura adotada pelo governo: há garantia de remuneração mínima pelas horas trabalhadas. Ora, também aí não houve avanço, pois o reconhecimento de que se trata de um típico vínculo de emprego seria suficiente para que um salário mínimo fosse garantido. A regra, na realidade, tem também uma finalidade precarizante, pois se refere ao ressarcimento das despesas que o trabalhador suporta, a serem devidas “nos termos do regulamento”, incluídas no valor-hora. Ou seja, concretamente não haverá ressarcimento de despesas.

E submetidas as partes ao processo negocial livre, determinado pela lei de mercado, ou seja, da oferta e da procura, a tendência é que os ganhos tendam a um rebaixamento constante, ainda que um valor nominal esteja garantido, pois poder de compra não tem correlação exata com este valor.

Enfim, o que se tem é o projeto de uma lei para um trabalho sem direitos. Uma lei que garante às multinacionais que exploram trabalho de transporte por meio de plataformas digitais, a possibilidade de seguirem atuando à revelia da legislação trabalhista e do pacto constitucional de solidariedade. Uma lei que fere a regra da jornada máxima prevista na Constituição. Uma lei que autoriza punição entre particulares que se relacionam a partir dos parâmetros jurídicos da igualdade e da liberdade. Um festival de retrocessos.

Se estivéssemos no governo anterior, certamente setores da esquerda e entidades do mundo do trabalho, incluindo o próprio Presidente e seu partido político, já teriam apelidado a proposta de “PL da morte dos trabalhadores e das trabalhadoras”.

Mas não foi o governo golpista, nem foi aquele que debochou das pessoas mortas por asfixia, durante a pandemia, que acabaram desferindo este ataque à classe trabalhadora. A ferida está sendo provocada por um ato de violência vindo do governo trabalhista e fará sangrar os trabalhadores e as trabalhadoras, ainda mais do que vêm sangrando na realidade brasileira (e não é de hoje); fará sofrer quem depende do trabalho para sobreviver.

Talvez por tudo isso esteja doendo tanto. (JORGE LUIZ SOUTO MAIOR E VALDETE SOUTO SEVERO) 

segunda-feira, 18 de março de 2024

COM A POMPA E CIRCUNSTÂNCIA DE QUEM DESCOBRIU A PÓLVORA, SAFATLE REPETE O QUE JÁ SABÍAMOS E NÃO APONTA FUTURO

O filósofo Vladimir Safatle é bem intencionado e consegue dissecar corretamente o passado, nem tanto o presente  e às vezes tropeça nas elucubrações sobre o futuro.

Eu, que como jornalista sempre me esforcei para tornar acessível ao leitor comum o blablablá empolado e pretensioso que é marca registrada da corporação acadêmica, não canso de me surpreender quando tantos se prostram a obviedades embaladas em papel para presente chique, como as que constam do artigo (aqui reproduzido) que o Safatle escreveu para a Ilustríssima da Folha de S. Paulo, em resposta  aos que criticaram seu último livro.

Para não perdermos tempo, antecipo que concordo com as análises abaixo, que eu mesmo já fazia há bom tempo, só que expondo-as em linguagem mais simples:
— a crise do subprime, em 2008, revelou que o capitalismo se aproxima inexoravelmente do fim e perdeu a capacidade de tornar a existência minimamente aceitável para contingentes humanos cada vez maiores (comparação minha: a época atual lembra muito a iminência da queda do Império Romano, pois há um número cada vez maior de bárbaros cercando-nos e as fronteiras dia a dia se tornam mais inseguras);
— face a isto, a ilusão reformista de que o capitalismo ainda se domesticaria ruiu por terra, o centro político sucumbe aos extremismos e as massas desesperadas despejam sua fúria sobre quem representa o stablishment;
— então, a esquerda institucional, que ora se apoia no centro para resistir às investidas da extrema-direita realmente morreu e só falta enterrar, pois, para obter vitórias momentâneas, sacrifica o desfecho da guerra, associando-se sua imagem àquilo que as massas mais desprezam (as fotos do Lula, pequenino e cheio de si, abraçando o imponente Artur Lira, quase me fazem vomitar!).
Quais as conclusões que podemos derivar de tais constatações?

A primeira é que Hebert Marcuse estava certíssimo no longínquo ano de 1964, quando em seu Ideologia da Sociedade Industrial previu que o consumismo e a lavagem cerebral da indústria cultural dariam um golpe de morte na esperança de irmos conscientizando aos poucos as massas para a revolução. 

Isto só funciona para quem ainda não foi mesmerizado e engolido pelo sistema. Sessenta anos depois fica claro que nos tornamos minoritários e é a partir daí que precisamos buscar formas de sobrevivermos politicamente, pois verdadeiros revolucionários não se deitam e esperam a morte chegar, lutam até o fim.

[Provavelmente isto não mudaria de forma decisiva o rumo dos acontecimentos, mas a obsessão do Lula em esvaziar a esquerda combativa e apostar todas as fichas petistas na conquista do poder ilusório conferido pelas urnas, desmobilizando a militância no vácuo entre uma eleição e outra, foi o principal erro de uma carreira repleta deles até a borda.]

E eis que, quando finalmente estamos prestes a nos ver livres do arquivilão Bolsonaro, percebemos que o golpe de misericórdia nessa direita que quer restabelecer, piorado, o capitalismo selvagem, continuará longe de ter sido dado. 

Alguém logo sucederá o palhaço assassino e, provavelmente não sendo maluco nem amarelão como o antecessor, deverá cumprir seu papel sem tanto estardalhaço mas com eficácia bem maior. 

Por que este pessimismo? Porque, desde o último ano em que a evolução do PIB brasileiro foi compatível com as necessidades de nosso país (2010, com 7,53%), enfileiramos desempenhos entre razoáveis e sofríveis, então o crescimento de 2,9% em 2023 ficou muito longe de representar o desafogo que a propaganda petista tenta nos impingir. Estávamos afundando com água até o queixo e agora o nível desceu para o pescoço. É motivo para espocarmos champanhe? 

Isto depois da saída de um presidente mentecapto sob quem os investidores não tinham a mais remota segurança para seus negócios e a posse do presidente conservador cuja afirmação mais emblemática sobre política econômica foi a de que os banqueiros nunca lucraram tanto quanto no seu governo. 

No início de 2023, eu previa um PIB de pelo menos 6%; não chegou nem à metade. Então, é compreensível o atual desencanto com o Lula3 e permanece a tendência de a agroindústria consolidar-se como o polo dinâmico da economia brasileira, alavancando a escalada política direitista. 

Com Bolsonaro varrido definitivamente da cena política (sua pena de prisão tende a ser bem longa, tal o volume de provas e depoimentos acumulados contra ele como golpista, afora o segundo ato que ainda virá, quando for apurada sua responsabilidade no extermínio em massa de brasileiros durante a pandemia!), é bem capaz de a direita se civilizar, passando a exercer uma dominação sem tamanhas maluquices e estridências. Elas não serão mais necessárias.

No entanto, ainda que tocado com luvas de pelica, o projeto dessa gente para o Brasil continuará sendo o mesmo: impor-nos a superexploração, dando um fim às ilusões de conciliação de classes e revivendo o anticomunismo grosseiro dos tempos da guerra fria. [Alô, Malafaia, é contigo que estou falando!]

E é aqui que deixo de estar em sintonia com o Safatle, pois o que ele propõe como resposta da esquerda aos desafios atuais são:
— platitudes retóricas de quem não tem um caminho das pedras para indicar ("Nossa tarefa seria criar o que ainda não existe, usando nossa imaginação política para identificar experiências onde elas estão e trazê-las para a constituição de um modelo");
— ou que equivalem ao uso de estilingues para matar elefantes ("construção de processos de democracia direta, dinâmicas de autogestão e ocupação de fábricas, lutas contra modelos extrativistas", etc.).

Ocorre que, como o próprio Safatle afirma, "nunca as crises do capitalismo se demonstraram tão claramente imbrincadas num sistema de crises conexas: crise ecológica, política, social, econômica, demográfica, psíquica e epistêmica".

É exatamente a simultaneidade entre tais crises e a perspectiva de que, pela via da sinergia, elas se alimentem e alavanquem mutuamente, que torna a situação atual mais ameaçadora do que qualquer outra que a humanidade já enfrentou. 

Para ficarmos apenas no que já morde nossos calcanhares:
— tudo indica que uma depressão econômica muito pior que a Grande Depressão do século passado se aproxima a passos largos;
— todas as previsões dos expertos sobre o avanço do aquecimento global e das alterações climáticas têm sido ultrapassadas; e
 abominações como Donald Trump e Vladimir Putin revivem nossos piores temores de guerras nucleares capazes de dizimar a espécie humana. 

Já pensaram no que acontecerá com a humanidade enfrentando ameaças tão terríveis ao mesmo tempo?

Concluindo: desde meados do século passado, quando caiu para a esquerda a ficha de que o proletariado industrial não será, de jeito nenhum, o sujeito de uma revolução nos moldes marxistas, várias tentativas de manter em pé as convicções antigas foram tentadas, em vão.

Primeiro foi afirmarem que a aristocracia operária realmente se deixara cooptar pelo capitalismo, mas o peão de fábrica continuava empunhando a bandeira vermelha. Mas, cadê o peão de fábrica que estava aqui? A tecnologia poupadora de mão-de-obra comeu.

Depois, houve quem proclamasse que o papel outrora atribuído aos operários industriais seria cumprido pelos assalariados de forma geral. Sem chance: são dispersos, não têm os mesmos interesses comuns e muitos deles já caíram na arapuca de se tornarem pessoas jurídicas e/ou tentam decolar sozinhos pela via do empreendedorismo, vendo os iguais como competidores a serem superados na luta inglória por um lugar ao sol .     

Marcuse sonhou com os marginalizados pelo sistema e os que dele se apartavam por escolha própria personificando, unidos, a esperança que restava. Mas, o exército da contracultura só durou até os EUA retirarem seus cowboys do Sudeste asiático e países próximos.

O saudoso Jacob Gorender colocava suas fichas no pessoal das ONGs, que, entretanto, nunca foi o titã Atlas, que tinha força para carregar o céu nas costas. E por aí vai.
Então, é por não sabermos com quem poderemos contar para comandar a revolução necessária que não conseguimos sequer definir uma estratégia viável para recuperarmos o terreno perdido nas últimas décadas.

E não nos ajuda o estado de espírito das massas, que, embrutecidas, querem mais é catarse, não soluções. Então, as fanfarronices desastrosas da extrema-direita lhes servem de compensação por terem sido conduzidos à insignificância e à impotência, sem sequer saberem identificar os verdadeiros inimigos e sem ânimo nem ousadia para reagir contra eles. 

E, como nosso compromisso é conduzirmos a humanidade a um estágio superior de civilização, não a fazermos regredir à Idade das Trevas, não podemos disputar espaço com os bufões ultradireitistas em tal palco dantesco. Dai aos bárbaros o que é dos bárbaros...  

Os que tentamos reconstruir a verdadeira esquerda nos deparamos com o que dela resta: voltou a um estágio tão embrionário que os voos mais altos são impensáveis em curto e médio prazos. Mas, algo ainda podemos definir, sim:
— temos de acumular forças com todo tipo de atividades que possamos desenvolver na contramão do sistema sem, contudo, partirmos desde já para os confrontos decisivos, pois 
não os conseguiremos vencer (o que não implica, contudo, deixarmos de responder às ações inimigas com reações de igual contundência, pois se apanharmos quietos, jamais inflamaremos as novas gerações, deixando-as entregues à insanidade dos motoqueiros fantasmas da ultradireita);
— precisamos formar militantes capazes de aproveitar as janelas revolucionárias que tendem a existir cada vez mais nestes estertores do capitalismo. Pequenos contingentes combativos, disciplinados e cientes do que estão fazendo, podem ter peso decisivo em situações caóticas como as que virão doravante. Quem não é o maior, precisa tornar-se o melhor.

Encerro com um tema para reflexão: podemos dizer que a extrema-direita é revolucionária, se ela apenas conquista o poder para dele ser logo desalojada (já que tudo que propõe é insustentável e desperta imensa rejeição quando colocado em prática, de forma que ela acaba servindo apenas para reforçar a dominação burguesa em determinadas circunstâncias, não para substitui-la)?

No sentido marxista, não! Para o velho barbudo, uma revolução ocorria quando se dava uma ruptura com a velha ordem política, social e econômica, sendo, no seu lugar, estabelecidos novos padrões de relações sociais.

Mas, a ultradireita do século 21 nada estabelece de duradouro, apenas destrói um estágio menos execrável da dominação burguesa, abrindo caminho para outro, de desumanidade extremada. De hora em hora, o capitalismo praticado no Brasil e no mundo piora. 

Atribuir dignidade revolucionária aos badernaços histriônicos dos Trumps e Bolsonaros, que têm mais a ver com entropia e niilismo, parece-me só uma provocação  de mau gosto.
(por Celso Lungaretti) 
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