sexta-feira, 30 de abril de 2010

5ª FEIRA NEGRA: STF AVALIZOU A LEI DO MAIS FORTE

A Folha de S. Paulo mente descaradamente:
“Por 7 votos a 2, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que a Lei da Anistia não pode ser alterada [grifo meu] para possibilitar a punição de agentes do Estado que praticaram tortura durante a ditadura militar (1964-1985)”.
O Estado de S. Paulo mente descaradamente:
“A anistia é ampla, geral e irrestrita. O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu ontem que a Lei de Anistia é válida e, portanto, é impossível processar penalmente e punir os agentes de Estado que atuaram na ditadura [grifo meu] e praticaram crimes contra os opositores do governo como tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados”.
O Globo, quem diria, foi o jornalão que relatou corretamente o ocorrido:
“Por sete votos a dois, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira arquivar a ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que contesta a Lei de Anistia, o que mantém vedada a possibilidade de processar torturadores [grifo meu]. A mesma regra vale para quem lutou contra o regime militar”.
Pois, exibicionismos retóricos e penduricalhos ideológicos à parte, o que o STF realmente decidiu foi: não cabe ao Judiciário alterar a Lei da Anistia, pois esta tarefa competiria ao Congresso Nacional. Só isto. Quem ler com atenção o relatório do ministro Eros Grau constatará que é este o fulcro da questão.

Portanto, se o Congresso Nacional decidir revogar a anistia de 1979 e substitui-la por outra Lei, ou simplesmente alterá-la, poderá fazê-lo quando bem lhe aprouver. E, nesse caso, seria, sim, possível “processar penalmente e punir os agentes de Estado”.

Conforme venho afirmando desde agosto de 2008, o grande erro da esquerda foi ter tirado esta discussão dos trilhos: o que havia a se fazer com a anistia imposta em 1979 pela ditadura de 1964/85 era dar-lhe o mesmo tratamento do restante do entulho autoritário. Deveria ser deletada pela democracia e substituída por outra, a ser gerada em liberdade.

Mas, para tal parto, era fundamental a anuência do Executivo, com seu formidável poder de fogo, e do Legislativo, que é quem dá a formatação.

Havia, entretanto, consideráveis obstáculos:
  • no Ministério prevalecia a corrente reacionária de Nelson Jobim, cuja função tem sido muito mais a de porta-recados dos comandantes militares do que a de seu superior;
  • o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sempre preferiu deixar tudo como estava, desautorizando duas vezes a ala então encabeçada por Tarso Genro e Paulo Vannuchi, daí a orientação que a Advocacia Geral da União tem seguido, de endossar a impunidade dos torturadores;
  • não se vislumbrava possibilidade nenhuma de o Congresso sequer aceitar mexer na anistia de 1979 sem um empenho do Governo neste sentido (as bancadas direitistas seriam naturalmente contrárias e a governista estaria, no mínimo, dividida, daí resultando um cenário óbvio de derrota).
O que a esquerda poderia ter feito em 2008?

Agir como esquerda: iniciar essa cruzada nas ruas e nas praças (além da web, claro...), convencendo primeiramente a sociedade, para que esta pressionasse os Poderes, de baixo para cima.

O que a esquerda fez?

Escolheu a opção menos trabalhosa, mas que manteve a luta restrita a uma minoria politizada: desencadeou uma guerrilha jurídica, utilizando o subterfúgio de descaracterizar os genocídios e atrocidades perpetrados pela ditadura militar, ao apresentá-los como se fossem iniciativa espontânea de subalternos e não ordens recebidas dos superiores, começando pelos generais ditadores.

Ou seja, na vã esperança de colocar uns velhos caquéticos na prisão, a esquerda se dispôs a avalizar uma das grandes falácias da ditadura: a de que aquele festival de horrores nos porões nada mais seria do que excessos cometidos por alguns aloprados, ao invés de constituir a própria essência do regime.

Resultado: nossa pior derrota política desde a redemocratização do Brasil.

ALGOZES E VÍTIMAS

Pois a leitura que a indústria cultural está martelando do julgamento no STF, com recursos infinitamente superiores aos nossos para fazer a cabeça da maioria da população, embaralha algozes e vítimas, sem deixar claro quem foi o quê.

Parecerá ao cidadão comum que os dois lados extrapolaram os limites civilizados e a melhor solução é passar-se uma borracha em cima.

É o que sempre alegaram as viúvas da ditadura: não tendo como negar a ocorrência de execuções, torturas, estupros, ocultação de cadáveres e outros crimes bestiais cometidos pelos golpistas de 1964 e seus sicários, passaram a imputar práticas semelhantes aos resistentes, pinçando um ou outro episódio infeliz e trombeteando-o ad nauseam em sua propaganda goebbeliana.

Ou seja, tentam fazer com que a exceção tenha o mesmo peso da regra, omitindo que em todas as lutas contra a tirania através dos tempos foram cometidos erros, sem que isto descaracterizasse o fundamental em tais confrontos: uns lutam para perpetuar o arbítrio e outros para dar-lhe fim.

De resto, em seu interminável e chatíssimo blablablá, os ministros do Supremo não deram resposta satisfatória a uma questão crucial: leis votadas por Congressos que funcionam precariamente em regimes de exceção têm o mesmo peso das produzidas na vigência plena das liberdades democráticas?

Pois o Congresso que pariu a anistia de 1979 era aquela casa da sogra que os militares fechavam tantas vezes quantas quisessem, cassando seus membros a bel-prazer, dissolvendo e/ou reorganizando partidos na marra e impondo restrições as mais arbitrárias a quem pretendesse se candidatar a uma cadeira.

Ou seja, tratava-se de um Congresso purgado, manietado e intimidado, que funcionava como Poder de fachada, pois o verdadeiro e único Poder estava na caserna.

Pretender que o mostrengo engendrado nessas condições – a anistia que igualou algozes e vítimas – tenha sido um pacto sagrado de conciliação nacional, desculpem-me os doutos ministros, é simplesmente risível.

No fundo, os parlamentares estavam pisando em ovos e a esquerda anuiu sob chantagem, pagando o preço que lhe impuseram para a libertação de presos políticos e o retorno seguro dos exilados.

A anistia que os algozes concederam a si próprios foi uma aberração jurídica, inclusive, porque nenhum deles tinha sido ou estava sendo punido de forma nenhuma. Colocou-se no mesmo plano a anistia das vítimas presas/barbarizadas e o habeas corpus preventivo dos criminosos recompensados/promovidos.

O julgamento da 5ª feira Negra nada fez para desestimular a eventual repetição de tais farsas.

Se é para avalizar o que a lei do mais forte determinou, para que precisamos de uma corte suprema?

quinta-feira, 29 de abril de 2010

MPE DEVASSA A CONEXÃO EUA DOS EXPLORADORES DA FÉ

"Não façais da casa de meu
Pai uma casa de negociantes”

(Cristo, ao expulsar do templo
os vendilhões – João 2,13-22)

O Ministério Público Estadual de São Paulo está tentando descobrir o paradeiro de cerca de R$ 400 milhões que a Igreja Universal do Reino de Deus remeteu para o exterior entre 1991 e 2001, por meio da Casa de Câmbio Diskline, da doleira Cristina Martin.

Em depoimento prestado na última 3ª feira (27) a três promotores de Justiça, a doleira admitiu ter intermediado tais operações, apontando nomes dos envolvidos e números de contas bancárias pelas quais passou o dinheiro da IURD nos Estados Unidos e Portugal.

De acordo com o MPE, parte desses recursos serviu para a aquisição de imóveis, carros, empresas de comunicação e um avião no Brasil.

A pedido dos promotores brasileiros, seus colegas de Nova York investigam os crimes financeiros cometidos nos EUA por essa organização criminosa, cujos chefões serão acusados pelo MPE de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. Sua intenção é pedir o bloqueio dos bens e das contas dos gângsteres nos EUA.

A IURD é como o premiê italiano Silvio Berlusconi, aquele promíscuo neofascista de notória associação com a máfia no passado e igualmente notórios crimes financeiros no presente: ninguém duvida de sua culpa, mas continua impune.

Das duas, uma: ou se condenam exemplarmente Edir Macedo e seus cúmplices, ou se retiram do Código Penal os crimes de estelionato, curandeirismo e lavagem cerebral.


Pois é um verdadeiro acinte a forma despudorada como tais exploradores da fé depenam os otários que lhes caem nas garras, conforme ficou mais uma vez demonstrado nas imagens que acabam de vir a público, sobre o treinamento dos pastores principiantes.

E que dizer da Igreja Renascer? Subornou a fiscalização para continuar operando em instalação precária. Houve desabamento e morte de fiéis. O que mais falta para se botar essa corja no xilindró e jogar a chave fora?!

quarta-feira, 28 de abril de 2010

O PATÉTICO DESFECHO DE UMA COMÉDIA DE ERROS

Há batalhas dificílimas que devemos lutar até o fim, por envolverem princípios e valores maiores. Caso da luta pela liberdade de Cesare Battisti: não podemos nem poderemos jamais nos omitir quando estiver em jogo a solidariedade revolucionária.
Outras são descartáveis e nem deveriam entrar em nossa pauta. Caso da tentativa de contornar-se a Lei da Anistia, para a punição dos torturadores subalternos como criminosos comuns: foi, desde o início, uma miragem.

Só havia um caminho para se corrigir a situação anômala criada pela anistia autoconcedida pelos algozes e aceita pelas vítimas sob chantagem (pois era o preço para a libertação de presos políticos e a volta dos exilados): a revogação pura e simples da lei de 1979 e sua substituição por uma nova, gerada em liberdade.

Foi esta, aliás, a proposta inicial do então ministro da Justiça Tarso Genro e do secretário especial de Direitos Humanos Paulo Vannuchi.

Mas, desautorizou-os duas vezes o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de constatarem que a maioria do Ministério preferia deixar tudo como estava.

Percebendo, ademais, que não conseguiriam no Congresso Nacional os votos necessários para a correção da falácia histórica, propuseram um atalho pedregoso: o recurso ao Judiciário, sem colocar verdadeiramente em xeque a anistia de 1979, contestando apenas se dela poderiam se beneficiar os agentes do Estado que praticaram delitos "não políticos" (assassinatos e torturas, principalmente).

Adverti de imediato que:
  1. Não passava de mentira, e todos sabíamos, que as violações de direitos humanos houvessem sido decididas por aloprados nos porões, à revelia de seus superiores. Na verdade, trata-se de uma tese dos defensores da ditadura de 1964/85, querendo jogar nas costas da arraia miúda a culpa por crimes dos quais toda a cadeia de comando militar foi responsável, tanto que deles tinham pleno conhecimento os generais ditadores;
  2. Punir os tarefeiros e poupar os medalhões pode servir como vingança para alguns, mas não é Justiça nem verdadeiro acerto das contas históricas pendentes;
  3. No entanto, sendo exatamente tal via tortuosa a sugerida por Genro e Vannuchi, excluiu-se, de imediato, a possibilidade de alcançarem-se, p. ex., os signatários do AI-5, como Delfim Netto e Jarbas Passarinho, que deram aos torturadores o cheque em branco para barbarizarem à vontade;
  4. E, como o Governo continua até hoje discordando da reabertura da questão, sempre que a defesa de torturadores denunciados à Justiça pede o parecer da Advocacia Geral da União, este lhes é favorável, o que tem peso enorme no veredicto;
  5. Last but not least, a Justiça brasileira é tão lenta e admite tantas manobras protelatórias que os torturadores, com seus advogados caríssimos, só correriam o risco de execução de uma eventual sentença prisional ou pecuniária se se mostrassem excepcionalmente longevos, quiçá centenários...
TROCOU-SE UMA VITÓRIA MORAL
POR UMA DERROTA POLÍTICA

A decisão do Supremo Tribunal Federal, que todos já sabem qual vai ser, deverá botar a definitiva pedra em cima da questão.

Aliás, até os assessores dos três presidenciáveis em maior evidência (Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva) confidenciaram à imprensa a preferência dos seus chefes pela negativa do STF, para livrarem-se da batata quente sem chamuscarem as próprias mãos.


E, o pior de tudo: vai parecer à sociedade que os verdugos terão sido inocentados.


Como ninguém o fará por mim, sou obrigado a lembrar eu mesmo: já em agosto de 2008 recomendei que desistíssemos de impor aos torturadores as penas que indiscutivelmente mereciam, mas cujo instante correto teria sido o da redemocratização do País, e passássemos a focar a História.

Ou seja, cabia ao Estado brasileiro, pelo menos, manifestar-se clara e definitivamente acerca da culpa dos usurpadores do poder e praticantes de genocídios e atrocidades, bem como do direito que os resistentes tinham de confrontar o arbítrio, inclusive pela via armada.

Os mandantes e praticantes das torturas deveriam receber a mais enfática condenação do seu papel histórico, para que fosse este o saldo do período que legaríamos aos pósteros. Assim, o precedente serviria para desestimular recaídas na barbárie.

Suas pessoas, entretanto, poderiam ser poupadas (anistiadas ou indultadas) por motivos humanitários, pois deixaram de ser apenados no momento justo e não havia ganho para a sociedade em encarcerar/multar idosos com o pé na cova, o que acabaria despertando comiseração por quem só faz jus a repulsa.

Apontei o caminho para fecharmos essa página da História com uma indiscutível vitória moral.

Mas, sou um general sem tropas. Os que as têm, pavimentaram o caminho para a derrota política.

E a propaganda enganosa dos fascistas continuará tendo munição para de(sin)formar as novas gerações, podendo inclusive alardear que a mais alta corte do País ilibou o regime militar de culpa...

terça-feira, 27 de abril de 2010

O MENDIGO HERÓI E OS ZUMBIS DO CAPITALISMO

Hugo Alfredo Tale-Yax era seu nome.

Para os novaiorquinos ele era ninguém. Nada.

Guatemalteco, ou seja, só um cucaracha. Barata que qualquer um pode pisotear.

Como sem-teto, um corpo estranho na metrópole da opulência, da modernidade e do glamour.

Como imigrante ilegal, um indesejável a ser removido pelas autoridades às quais compete manter os empesteados longe do castelo de Próspero (1).

Como desempregado e pedinte, a imagem viva do fracasso numa cidade que só respeita vencedores.

Hugo tinha 31 anos.

Seus sonhos o levaram aonde lhe diziam ser o centro do mundo.

Não sabia que era só o centro da desumanidade capitalista; de um mundo regido pela ganância, pela competição e pela insensibilidade.

Não sabia que o tratariam como pária, talvez pior do que na Índia.

E, finalmente, que nem sequer o veriam mais, pois os olhos deles só miram o que cobiçam.

Então, ninguém viu quando Hugo foi socorrer uma mulher ameaçada por um brutamontes. [E como poderiam vê-lo, se faziam questão de ignorar a briga, para que ninguém pudesse depois arrolá-los como testemunhas?!]

Não viram Hugo arriscar sua vida por uma desconhecida.

Não o viram ser esfaqueado várias vezes.

Não prestaram atenção na mulher que fugia apavorada, nem no assassino se afastando tranquilamente.

Ignoraram que Hugo esvaía-se em sangue, numa lenta agonia.

As câmaras de segurança de um edifício registraram a cena. Mas, trata-se de um dispositivo para resguardar os bens dos ricaços que moram no condomínio de luxo. Não serve para salvar seres humanos que estrebucham na calçada.

As imagens mostram umas 25 pessoas passando ao lado do moribundo e se desviando.

Houve, sim, uma que o tentou ajudar. Mas, ao perceber o sangue encharcando suas roupas puídas, afastou-se, para evitar complicações.

Assim se desperdiçou hora e meia. Assim a vida foi escorrendo de Hugo durante hora e meia.

Se alguém pensou em chamar a polícia, desistiu. A moeda ou o tempo gasto poderia fazer falta. Mendigos não fazem falta.

Finalmente, alguém ligou. Tarde demais.

Nova York não queria Hugo Alfredo Tale-Yax.

E também não o merecia.

Heróis são anacrônicos na cidade onde vegetam os zumbis do capitalismo.

1) Príncipe que deu refúgio aos nobres para aguardarem, em infindáveis orgias, o fim da peste que dizimava os aldeães, escorraçando-os quando lhe imploravam abrigo (em "A Máscara da Morte Rubra", de Edgar Allan Pöe).

segunda-feira, 26 de abril de 2010

PARAGUAI EM TRANSE

A direita latinoamericana está saudosa dos Pinochet e Stroessner
Autorizado pelo Congresso paraguaio, o presidente Fernando Lugo declarou estado de exceção, durante 30 dias, em cinco dos 17 Departamentos do país: Concepción (na fronteira com o Brasil), San Pedro, Amambay, Presidente Hayes e Alto Paraguai.

Com isto, o Exército poderá abrir sua caixa de ferramentas, recorrendo às práticas invariavelmente adotadas no combate aos guerrilheiros da América Latina.


Lugo prometeu que os lobos não devorarão ovelhas (acredite quem quiser...):
"O governo oferece as mais amplas garantias de que este processo não comprometerá nenhum procedimento que tenha a ver com os direitos humanos".
O alvo são os militantes do grupo armado Exército do Povo Paraguaio, que assassinaram quatro pessoas numa emboscada da semana passada.

Por que uma reação tão extremada a um atentado estúpido, sem dúvida, mas que nem de longe representou séria ameaça para as instituições paraguaias?

É que o ex-bispo Lugo, um esquerdista cuja eleição acaba de completar dois anos, está sob forte ataque da direita conspiradora, sob a acusação de obstar "reformas liberais modernizantes". Conhecemos bem essa cantilena.

Os corvos de sempre -- como o senador dito liberal Alfredo Luís Jaeggli -- pregam o julgamento político e afastamento de Lugo. Sonham com um novo general Stroessner.

Esboça-se um cenário hondurenho: como o primeiro ovo da serpente não foi esmagado, outros podem eclodir.

Para piorar, Lugo perdeu um tanto de sua autoridade moral com as sucessivas revelações de que, quando sacerdote, tomava ao pé da letra o "crescei e multiplicai-vos". [Estão se queixando do quê? Este, pelo menos, não era chegado em coroinhas...]

Então, tudo indica que esteja exibindo o muque, para se mostrar confiável à classe média e à direita moderada, dissuadindo-as de atrelarem-se à aventura golpista.

É uma aposta arriscada: quando os militares são chamados a resolver os problemas dos civis, costumam tomar gosto pela coisa. Melhor deixarmos as tarefas policiais para a Polícia, tanto no Paraguai quanto nos morros cariocas...

De resto, a Coordenadoria de Direitos Humanos do Paraguai já manifestou seu temor de que os fardados barbarizem. É o que farão, com certeza.

Cabe a nós esmagarmos este outro ovo da serpente, não compactuando de nenhuma forma com a idéia de que a tortura se justifica no caso de aloprados como os do EPP. Merecem ser presos e punidos, mas sem o recurso a práticas hediondas.

Levamos milênios erguendo o edifício da civilização. Temos o dever de mantê-lo em pé.

BUMERANGUE

Mas, só devemos zelar para que sejam tratados como seres humanos e não como animais. Solidariedade política seria descabida, pois, com sua insensatez, acabam prestando serviço ao inimigo.

A luta armada deve ser sempre encarada como a última opção de um revolucionário, pois seu custo é imenso e os civis acabam pegando as sobras.

Justifica-se contra ditaduras assumidas e, eventualmente, contra as enrustidas (como foram os 35 anos de Stroessner à frente do Paraguai, conquistando mandato após mandato em eleições fraudadas).

E é um bumerangue: quando fracassa, fortalece os gorilas.

No Brasil, sabe-se que o cabo Anselmo atuava como provocador nos movimentos de marinheiros durante o governo João Goulart, tudo fazendo para radicalizá-los, a fim de assustar a oficialidade das três Armas e jogá-la nos braços dos golpistas.

Depois, em 1968, militares de linha dura empenhados em radicalizar ainda mais o regime, promovendo o fechamento total (que viria com o AI-5), incentivaram um lunático chamado Aladino Félix, vulgo Sábado Dinotos, a efetuar ações armadas que eram imputadas à esquerda.

Liderando um bando de soldados e sargentos da Força Pública (a Polícia Militar da época), Félix foi responsável por 12 explosões de bombas e um assalto a banco. A ação mais sensacional foi mandar pelos ares alguns carros de um estacionamento localizado diante do prédio do Deops.

Os aprendizes de feiticeiros eram descuidados: uma unidade policial alheia ao esquema de acobertamento prendeu o guru. E este. ao ser torturado, confessou que agira sob orientação do general Jayme Portela, chefe da Casa Militar da Presidência da República.

Ou seja, quando faltam espantalhos para a propaganda golpista, a direita os inventa.

A esquerda que pegou em armas contra as ditaduras latinoamericanas cumpriu o papel de resistir à tirania. Embora os resultados tenham sido trágicos, fazia sentido sua aposta em generalizar a resistência, respondendo à generalização das ditaduras em nosso continente. E é bem mais cômodo recriminar-se os derrotados do que travar-se as batalhas quando ainda podem ser vencidas.

Já guerrilhas extemporâneas e isoladas como a do EPP, sem chance nenhuma de êxito e servindo para solapar um governo de esquerda, são crassa idiotice.

"Quem é burro, pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue", diziam os antigos.

sábado, 24 de abril de 2010

SERRA AGORA QUER CASTRAR OS SINDICATOS

"Hoje mocinho, amanhã bandido" (slogan de campanhas
antigas contra brinquedos que reproduziam armas).

Por uma questão de princípio, não participo de querelas eleitoreiras.

Para quem, como eu, acredita que os Executivos federal, estaduais e municipais não têm autonomia para decidir o destino da Nação (ditado pelo poder econômico) e cumprem apenas o papel de síndicos do edifício capitalista, seria incoerente conferir peso significativo à escolha desses síndicos.

Estou careca de saber que, num país da importância geopolítica do Brasil, a política econômica será sempre imposta pelo grande capital. Isto é uma espécie de cláusula pétrea de uma Constituição que não está à vista de ninguém, mas tem força bem maior que a de 1988.

Vai daí que continuo apostando todas minhas fichas na organização autônoma dos cidadãos, fora do Estado e contra o Estado, para criarmos uma democracia fundada na priorização do bem comum e dos interesses coletivos. Essa que aí está expressa apenas o primado da usurpação e da ganância.

Mas, como preservo o legado da resistência à ditadura de 1964/85, permito-me criticar atores políticos que iniciaram essa caminhada nas fileiras dos justos e agora se compõem com os injustos.

Caso de José Serra, que acaba de qualificar de "político-eleitoral" a recente greve dos professores da rede estadual de São Paulo.

A criminalização da greve está sendo pleiteada por tucanos e demos (o leitor que decida se são democratas ou demoníacos...) e um parecer equivocado da Procuradoria-Geral Eleitoral veio ao encontro do pleito reacionário.

Ao mesmo tempo em que, para todos os efeitos, apóia a representação do DEM e do PSDB contra a Apeoesp, Serra faz questão de ressalvar que a iniciativa de apresentá-la não foi sua.

É claro que, para um ex-presidente da UNE, trata-se de um ato absolutamente inconcebível, daí a retórica farisaica.

Se não apóia, o que está fazendo ao lado de gente que quer cercear a manifestação política dos sindicatos?

Se não apoiava a presença dos piores brucutus da PM no campus da USP, por que os mandou lá, ao invés de escolher unidades mais aptas para lidar com professores e estudantes?

Se não mudou de idéia acerca dos usurpadores do poder de 1964, por que deixou, durante todo seu governo, que a página virtual da Rota os elogiasse?

Se não apóia as vinganças selvagens da direita contra cidadãos idealistas, por que se pronunciou a favor da extradição de Cesare Battisti?


Não, as evasivas não colam. Se quer eleger-se presidente da República com os recursos da direita e está disposto a todas as concessões para mostrar-se-lhe confiável, que tenha, ao menos, a hombridade de admitir que, hoje, é favorável a manietar sindicatos, barbarizar campus, endossar golpismos e linchar contestadores.

Quanto ao parecer da Procuradoria Eleitoral, vou repisar o óbvio:
  • ao pretenderem atrapalhar as pretensões presidenciais de um político que fez o que Serra fez com a Educação em São Paulo, os professores paulistas estavam em seu pleno direito e tinham todos os motivos para agir como agiram;
  • se houvessem tomado partido explícito por tal ou qual candidatura oposta à de Serra, o que não fizeram, aí sim se poderia discutir o caráter de sua greve (e mesmo assim, a condenação não seria automática, pelo menos numa democracia).
De resto, sou obrigado a me repetir e a repetir o que o colega Jânio de Freitas brilhantemente escreveu em sua coluna A greve da hora:
"O histórico reacionarismo brasileiro foi que propagou a ideia de que sindicatos e congêneres só podem promover ações sem mais pretensão ou conotação do que reivindicações profissionais específicas. E, ainda assim, bastante estritas e sob legislação muito restritiva.

"...Impedir sindicatos e congêneres de se manifestar politicamente seria trazer de volta um pedaço de ditadura."
Quando presidente da UNE, Serra decerto subescreveria estas palavras.

Como presidenciável demo-tucano, ele não hesita em queimar todas as bandeiras que um dia, dignamente, empunhou.

Deveria ler os Evangelhos:
"Pois, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma?" (Mateus, 16:26)

sexta-feira, 23 de abril de 2010

RUI MARTINS: BRECHT O CHAMARIA DE "IMPRESCINDÍVEL"

Tão logo Cesare Battisti foi preso no Brasil, o consagrado jornalista Rui Martins iniciou a reação, escrevendo seus artigos vibrantes, para despertar solidariedade no Brasil e na Europa.

Depois, quando vi que não se concretizava minha expectativa de uma rápida solução via Conare e entrei com armas e bagagens na luta, o Rui avaliou que, como nós dois tínhamos basicamente os mesmos talentos e eu estava no palco da ação (e ele na Berna distante), poderia deixar o principal da batalha de opinião pública a meu cargo.

Pois havia uma luta que ele considera prioritária e à qual não estava podendo dedicar-se como gostaria: a defesa dos imigrantes ilegais na Europa.

Passou a escrever sobre o Cesare apenas esporadicamente, nos momentos mais agudos. E continuou sendo de imensa valia para nossa causa.

Quero prestar-lhe meu tributo, pela extrema dedicação na primeira metade dessa luta, quando tudo era muito mais difícil, já que poucos sabiam o que realmente estava em jogo nessa cruzada; e pela firmeza de caráter que demonstrou, não se preocupando minimamente com os louros da vitória, já que seus esforços eram mais necessários em outra trincheira.

Recomendo a todos a leitura do artigo que, espera o Rui, será o último das suas dezenas de textos dedicados ao companheiro italiano: Lula e a libertação de Battisti.

A minha avaliação é a mesma.

E o papel do Rui terá de ser sempre reconhecido e louvado, quando se falar nesta que será a maior vitória da esquerda revolucionária brasileira de um bom tempo para cá.

SUBSTITUIÇÃO NO STF: SAI SEIS, ENTRA MEIA DÚZIA

"Senhor cidadão,
eu e você
temos coisas até parecidas:
por exemplo, nossos dentes,
da mesma cor, do mesmo barro,
enquanto os meus guardam sorrisos,
os teus não sabem senão morder"
(Tom Zé)

LÁ SE VAI O SUJEITO DE TOGA, SOB O DESDÉM DOS SUJEITOS NA ESQUINA

"E agora, José?
A festa acabou,

A luz apagou,

O povo sumiu,

A noite esfriou,

E agora, José?"

(Carlos
Drummond
de Andrade)

O Supremo Tribunal Federal deixa enfim de ser presidido por quem jamais deveria ter ocupado tal posição e será sempre citado como argumento irrespondível contra a prática do rodízio entre os ministros, que pode colocar o pior deles à testa da mais alta corte do País.

De todos os juízes desta Nação em todos os tempos, Gilmar Mendes foi aquele que teve a nudez mais percebida pelos cidadãos comuns -- aqueles sujeitos na esquina aos quais o sujeito de toga se referiu com aristocrático desprezo em certa ocasião, caracterizando-os como imbecis cuja opinião não deve ser levada em conta pelos doutos.

Platão pensava diferente, saudando o espírito de justiça de que até os sujeitos na esquina são imbuídos. E Jesus Cristo considerava bem-aventurados os humildes, aos quais está reservado o reino dos Céus.

O biênio de Gilmar Mendes como presidente do STF foi marcado pela completa submissão da Justiça aos interesses dos poderosos, deixando em cacos a credibilidade do Supremo.

A Folha de S. Paulo, que também jogou sua credibilidade no lixo há muito tempo, não teve pejo de publicar um editorial louvaminhas (Gilmar Mendes), tão ridículo quanto o da ditabranda, no qual afirmou, entre outros disparates: "Gilmar Mendes ficará não apenas como um dos mais polêmicos mas também como um dos mais ativos presidentes da história do Supremo Tribunal Federal".

Omitiu que tal atividade só foi mesmo frenética quando se tratava de expedir habeas corpus instantâneos para o corruptor-símbolo do País e de despachar um menino a toque de caixa para atender a uma chantagem explícita estadunidense e tranquilizar nossos exportadores, enquanto os demais brasileiros ficamos reduzidos à condição de poltrões que pulam quando o cowboy dá tiros no chão.

Eis outras marcas indeléveis da gestão de Mendes:
  • a criminalização dos movimentos sociais, em declarações visivelmente orquestradas com as campanhas reacionárias da imprensa golpista;
  • o alinhamento com as falácias das viúvas da ditadura ao qualificar de "terrorista" quem resistiu à tirania, respondendo a uma frase da ministra Dilma Rousseff sobre torturadores com uma insinuação tão injuriosa quanto descabida;
  • a evidente disposição de erigir o Supremo numa alternativa de poder, contrapondo-o em tudo e por tudo ao Executivo;
  • a abusiva manutenção de Cesare Battisti como único preso político do Brasil redemocratizado por mais de três anos, ao arrepio da Lei do Refúgio e da jurisprudência firmada ao longo dos tempos (e atropelada pelo STF num julgamento kafkiano);
  • os atentados contra a profissão de jornalista, não só contribuindo decisivamente para sua desregulamentação (como relator que foi da ação sobre os diplomas específicos no STF), como a depreciando em mais uma de suas declarações estapafúrdias à imprensa (a equiparação com cozinheiros).
Last but not least, Gilmar Mendes será lembrado como o presidente do STF que levou um definitivo calaboca de outro ministro em plena sessão, sem que lhe ocorresse um mísero argumento para tentar justificar sua notória compulsão por holofotes.

Foram, aliás, dois anos seguidos em que autoridades, políticos, juristas, jornalistas e até os sujeitos na esquina (que desabafam nos espaços para leitores) cansaram de lembrar a Gilmar Mendes a regra de ouro do ofício: juiz se manifesta nos autos, não nos microfones da mídia.

Em vão. Sua incontinência verbal nada fica a dever à de muitos pop stars.

LÁ VEM UM TOGADO DEVOTO DE SÃO FRANCISCO E HERDEIRO DE TOQUEMADA

Visceralmente avesso aos podres poderes, só tomei conhecimento da existência de Cezar Peluso, ministro do Supremo Tribunal Federal, quando ele apresentou seu relatório no kafkiano julgamento do pedido de extradição do escritor italiano Cesare Battisti.

Fiquei pasmo: tendo várias vezes entrado em contato com a Justiça em minha longa trajetória de lutas, jamais vira um relator tão arbitrário. Conseguiu ser pior ainda do que os farsantes que atuavam nas auditorias militares durante a ditadura de 1964/85.


Assim o analisei imediatamente após a primeira sessão de julgamento:
"O ministro Cezar Pelluzo produziu um relatório tão parcial e tendencioso que, fosse o STF um tribunal que se desse ao respeito, não poderia sequer ter sido aceito.

"Pois o que se espera de um relator é uma apreciação desapaixonada, que avalie com equilíbrio os argumentos de ambas as partes, não o alinhamento incondicional com uma parte (a Itália) contra a outra (Cesare Battisti e o governo brasileiro)".
Peluso está prestes a assumir a presidência da mais alta corte do País. Rodízio tem consequências nocivas como esta: conferir tamanho poder a quem dele fará o pior uso possível. Se como ministro tem sido uma calamidade, imaginem como presidente!

Daí a importância do que é revelado sobre Peluso no artigo
Acórdão do Caso Battisti: críticas e propostas, de Carlos Lungarzo.

Como militante da Anistia Internacional há três décadas, Lungarzo acompanhou atentamente a trajetória recente desse juiz. E traça um perfil devastador, que nos deve inspirar muitas reflexões:

"...Peluso é o verdadeiro arquiteto da condenação do escritor italiano. (...) Peluso teceu complicadas falácias, às quais grudou fatos pseudo-históricos que temperou com sarcasmos e ofensas ao ministro da Justiça. Tático preciso no curto prazo, o relator rogou de joelhos a tutela da Itália, e poluiu os discursos de seus 'dissidentes', como no caso de Eros Grau, para tergiversar seu voto.

...ele não desesperou quando, apesar de todos seus esforços para criar o caos, não conseguiu que Eros Grau desistisse de votar pelo direito de Lula. Apertou os dentes e comentou sobre as conseqüências desse ato: se Battisti não fosse extraditado, ficaria eternamente preso no Brasil, porque só ele poderia liberá-lo. É mais que provável (embora não ainda provado) que sua experiência tenha ajudado o advogado da Itália a retificar a proclamação de resultado na extemporânea sessão de dezembro, fora de qualquer prática legal, coagindo Eros Grau a cair na 'virada de mesa', como foi chamada por Marco Aurélio.

Peluso não é um político ambicioso, um magistrado performático: é um personagem de O Nome da Rosa com experiência em acender fogueiras. Ele ficou famoso por vários votos que emitiu no STF desde que foi nomeado ministro.

Aborto de Anencéfalos

No dia 27/09/2004, o procurador geral Cláudio Fonteles, fundamentalista católico e militante franciscano, (...) requereu ao Plenário do STF uma definição sobre a liminar concedida por Marco Aurélio de Mello a uma mulher grávida de um feto anencefálico para poder abortar legalmente.

O julgamento, promovido pelo lobby dos bispos, mostrou (muito antes do caso Battisti) os riscos de uma sociedade na qual a justiça é distribuída por fanáticos místicos e pessoas que, sob qualquer pretexto, se aliam a eles... De maneira imprevisível para um país ocidental, pretensamente líder no continente, na alvorada do século 21, a liminar foi cassada parcialmente por 7 votos contra 4 durante a sessão do 20/10.

Nem todos esses sete votos em favor da tortura ritual foram da mesma intensidade. O voto de Cézar Peluso destacou-se por ser o único que cassava a liminar na íntegra, interrompendo de imediato qualquer processo no qual pudesse ser aplicada.

Alguém interrogou Peluso sobre a crueldade gratuita de uma lei que exigia gerar um filho que estava destinado a morrer imediatamente. O juiz não duvidou em sua resposta:

- Todos nascemos para morrer.

Durante uma sessão do tribunal, o advogado Barroso (um dos defensores do caso Battisti) e outros se referiram ao sofrimento de uma mãe que deveria passar meses de uma gravidez de altíssimo risco, para dar à luz uma criança com a qual criaria laços de carinho, e que veria morrer horas depois numa agonia horrível. Também então respondeu com convicção, para que ninguém pudesse acusá-lo de algum sentimento profano:

- O sofrimento não degrada a dignidade humana. É, ao contrário, essencial. O remorso também é sofrimento.

Se você duvida de que alguém possa ter dito algo dessa espécie num país ocidental no século 21, clique aqui.

Células-Tronco

No 29/05/2008, o STF chegou a uma conclusão favorável sobre a lei que permite o uso de células tronco embrionárias em pesquisas biológicas. Aquela sessão é considerada por todos uma das mais tumultuadas e confusas já tidas no tribunal. Segundo alguns observadores, inclusos colegas de Peluso, este teria hesitado sobre se deveria votar a favor ou contra. Entretanto, até alguns ministros conservadores se impressionaram pelos argumentos dos cientistas, e pelo terrível espetáculo de ativistas cadeirantes que reclamavam seu direito á vida e à felicidade nas redondezas do fórum.

Mas a lei contava com a maldição da CNBB, e de dois de seus Oberführer mais importantes: o monástico procurador Fonteles e o advogado dos militares, Ives Gandra Martins, ferrenho inimigo do Plano Nacional de DH e da Lei de Igualdade Racial. Peluso ficou algum tempo acima do muro, o suficiente para que seu voto fosse computado como negativo. No dia seguinte, tentou consertar a situação e, envergonhado, acusou aos membros da audiência de não ter entendido seu voto, que, segundo ele, era positivo.

Contra os DH

A magistratura curte, em sua maioria, um senso de sacralidade sobre sua própria atividade. Isto ficou em evidência quando a historiadora, escritora e antropóloga francesa Fred Vargas formulou suas famosas 13 perguntas ao Ministro Peluso, nas quais as falácias do relatório ficavam expostas, e as afirmações inverídicas sobre fatos eram contrastadas com os fatos reais acontecidos durante os 4 crimes tortuosamente imputados a Battisti.

Peluso, comprometido com o holocausto de Battisti, recusou-se a responder as perguntas formuladas por Vargas, e até a pedir documentos que a Itália sonegava, que teriam importância fundamental para julgar o extraditando. P. ex., o relator rejeitou a possibilidade de conferir (com uma perícia feita no Brasil) a falsificação que o Tribunal do Júri de Milão fez das procurações atribuídas a Battisti. Veja minha demonstração passo-a-passo das provas encontradas por Fred Vargas aqui.

O currículo de Peluso contra os DH não se limita a atacar o direito à diversidade religiosa (quando defendeu a presença do crucifixo no STF), nem a negar os direitos biológicos ao aborto e à saúde, nem mesmo a condenar inocentes em função de interesses da direita, a cuja parte mais arcaica e inquisitorial ele pertence. Não é “apenas” isso, não...

No ano 2005, antes de ter adquirido sua fama atual, já Peluso adotou uma atitude condizente com sua vocação. Concedeu habeas corpus ao coronel Mario Colares Pantoja, comandante do massacre em Eldorado dos Carajás (Pará), no qual 19 manifestantes sem-terra pacíficos foram assassinados. Um prêmio merecido para aqueles que querem limpar o planeta de inconformados que exigem os direitos que só os senhores merecem. Se a faxina for feita com sangue, o espaço ficará mais limpo.

Este é um retrato rápido, rigorosamente documentado, do homem que mantém Cesare Battisti como refém. Uma pessoa que louva o sofrimento (dos outros), que acredita na identidade entre o ser humano e o esperma ancorado no óvulo, despreza os plebeus que se incomodam com o despotismo do Judiciário, louva a presença de cadafalsos num país considerado laico, e facilita a vida de genocidas.

Puritanismo, sadismo, carolice, desprezo pela humanidade. Este é o homem que os milhares de amigos de Battisti devemos confrontar. Detrás dele, o poder da espada, a cruz e a mídia. Uma luta desigual da qual não podemos fugir."

quinta-feira, 22 de abril de 2010

CASO BATTISTI: LULA DEVERÁ MIRAR-SE NO ESTADISTA MITTERRAND

Tudo indica que, nestes últimos dias de abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva colocará ponto final num drama que se arrasta há mais de três anos, confirmando a decisão que seu governo já tomou em janeiro/2009, de conceder ao escritor italiano Cesare Battisti o direito de residir e trabalhar em paz no Brasil.

Em termos simbólicos, será um dos grandes momentos de Lula, ao escolher o exemplo certo no qual mirar-se: o de François Mitterrand, e nunca o de Getúlio Vargas.

Ciente de que os militantes da ultraesquerda italiana haviam cometido atos discutíveis em circunstâncias de enorme radicalização política, tendo sido depois julgados em meio a flagrantes violações de seus direitos, o presidente francês assumiu há 25 anos -- exatamente em 21 de abril de 1985, no 65º Congresso da Ligue des Droits de l'Homme -- a digna postura de oferecer-lhes abrigo em seu país, desde que tivessem abandonado a violência e não praticassem mais crimes.

A Lei Mitterrand fez o que a Itália deixou de fazer: promulgar uma anistia aos que travaram as lutas dos anos de chumbo, marcadas por excessos documentados de parte a parte.

Embora até hoje seus farisaicos defensores batam na tecla de que lá havia democracia, o certo é que algumas instituições funcionavam como se deve, outras não.

A repressão política e a Justiça incidiram em práticas não muito diferentes das adotadas pelas ditaduras latinoamericanas, como as torturas, a promulgação de leis de exceção (incluindo a que facultava a manutenção de um cidadão preso preventivamente durante mais de 10 anos!), o estímulo à delação premiada e a aceitação da palavra de um co-réu contra outro (permitindo a transferência de culpa), etc.


O Caso Battisti, aliás, registra um dos maiores descalabros do período: a falsificação de procurações por parte de advogados que defendiam co-réus cujos interesses eram conflitantes com os dele e, aparentemente, representaram-no com o objetivo de o prejudicar para favorecer a esses outros.

Ter aceitado como definitivas as procurações fraudadas, mesmo depois que a fraude foi cabalmente atestada por uma das mais eminentes peritas da Europa, deixa a Justiça italiana sob forte suspeita de cumplicidade com a farsa supostamente tramada entre advogados e promotores.

Por essas e outras, teria sido melhor para todos que as coisas permanecessem como Mitterrand as posicionara.

Mas, a ascensão da direita neofascista ao poder na Itália deflagrou uma rancorosa caça às bruxas, erigindo em símbolo Cesare Battisti, militante secundário de um grupo secundário da esquerda armada, dentre os aproximadamente 500 que atuaram durante a década de 1970 em seu país.

Tudo leva a crer que foi escolhido por sua crescente notoriedade como escritor. Era o alvo ideal para a demonstração de força que Silvio Berlusconi queria dar, exibindo sua cabeça como troféu que atestasse a vitória final da direita sobre a esquerda nas refregas dos anos de chumbo.

Para tanto, a Itália armou uma avassaladora campanha de pressões políticas e econômicas, com apoio midiático obtido a peso de ouro, para convencer a França a revogar o solene compromisso assumido em seu nome por Mitterrand.

Vai daí que, desde 2004, um homem a quem nenhum crime se imputava desde 1979 (sendo extremamente discutíveis os que lhe atribuíam antes disso), foi obrigado a uma fuga sem fim e sem real motivo, apenas porque a razão de estado conspirava contra ele e mobilizava recursos astronômicos para o crucificar.


No Brasil, a nova escalada direitista encontrou receptividade no Supremo Tribunal Federal: alguns ministros viram a chance de usar o Caso Battisti como ponto de partida para a criminalização da esquerda armada em geral (começando pela de um país democrático que resvalara momentaneamente para uma espécie de macartismo à européia e terminando naquela que resistiu a nossas ditaduras explícitas)

Secundaram-no as forças de oposição ao Governo Lula, na verdade interessadas principalmente nos ganhos propagandísticos que esperavam obter na corrida presidencial; e a imprensa, que hoje aqui assume totais características de indústria cultural, colocando a propagação das versões convenientes para o capitalismo muito acima do compromisso com a disponibilização da verdade.


Mas, a resistência de cidadãos dotados de espírito de justiça e dos abnegados defensores dos direitos humanos frustrou a tentativa de, durante o julgamento do pedido de extradição italiano no STF, não só revogar-se na prática a Lei do Refúgio e a jurisprudência consolidada, como também automatizar-se a sentença, com a abolição da instância final (o presidente da República).

Vai daí que Lula pode agora decidir se aceita ou não a mera recomendação de refúgio que o STF lhe mandou, decorrente de uma controversa e dividida votação de 5x4.

Mas, sabe-se que sua convicção íntima vai em direção oposta -- até porque não quer passar à História como responsável por infâmia semelhante à de Getúlio Vargas, ao não impedir que o STF entregasse à Europa outro troféu cobiçado pela mesmíssima direita troglodita, Olga Benário.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

UMA HISTÓRIA SEMELHANTE À DE BATTISTI


O HORROR NUCLEAR, A ARTE E A VIDA

"Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas...
Mas, não se esqueçam
Da rosa, da rosa,
Da rosa de Hiroshima"
(Ney Matogrosso)

A ARTE
O Dia Seguinte (1979 - d. Nicholas Meyer)
Numa pequena cidade do Kansas, uma família prepara um casamento. O Dr. Oakes (Jason Robards) se ocupa com sua função de chefe de cirurgia do hospital local. As pessoas cumprem suas rotinas diárias, sem saber que o mundo está próximo de uma guerra nuclear.

Os soviéticos atiram mísseis contra a Alemanha, atacam um navio estadunidense no Golfo Pérsico e, depois, o quartel general da OTAN. As notícias geram pânico, muitos constroem abrigos em seus porões, a maioria é pega de surpresa.

A destruição não poupa o Kansas: o Dr. Oakes e sua família tentam sobreviver num mundo estéril e devastado, sem energia elétrica, água ou comida, mas com muita radioatividade, fome e doenças.
A VIDA
Crise dos mísseis cubanos (outubro de 1962)
Em todos os países há pessoas com o ouvido colado nos rádios e lançando olhares angustiados para o céu, à beira do pânico.

Nunca estiveram tão presentes nas mentes e tão opressivas nos corações as imagens dantescas dos genocídios de Hiroshima e Nagasaki. Era concreta a possibilidade de repetição daqueles horrores em escala muito mais ampla.

É que os EUA, ao obterem provas fotográficas da existência de silos de mísseis soviéticos em Cuba, deram um ultimato à URSS, exigindo sua imediata remoção.

A União Soviética, inicialmente, não cedeu. Pelo contrário, ao saber que os norte-americanos haviam iniciado um bloqueio naval e aéreo de cuba, despachou uma frota que o tentaria romper.

Um único disparo e começaria a reação em cadeia! Estava-se a um passo da guerra nuclear entre duas nações que acumulavam poder destrutivo suficiente para exterminar a espécie humana.

Foram 13 dias que apavoraram o mundo, enquanto se desenvolviam tensas negociações entre os governos de John Kennedy e Nikita Kruschev. Nunca os estadunidenses compraram tanto cimento e tijolo como nesse período em que construíram, sofregamente, abrigos nucleares em suas casas.
[A histeria coletiva inspirou um episódio magistral da série de TV Além da Imaginação, sobre vizinhos que, ao confraternizarem numa festa, recebem a notícia de que a guerra atômica pode estar começando.

O único que havia transformado seu porão em abrigo, nele entrincheira-se com a família, negando acesso aos demais, por não haver mantimentos, água e espaço físico para tanta gente.

Quando os outros estão pondo abaixo a porta, empunhando tacos de beisebol e outras armas improvisadas, chega o desmentido: rebate falso. Mas, suas reações primitivas e egoístas durante a emergência revelara a todos como eles realmente eram, sob o verniz da hipocrisia social.]
A crise dos mísseis cubanos terminou com cada lado cedendo um pouco e o mundo suspirando aliviado.

Os EUA concordaram em, posteriormente e sem alarde, retirarem mísseis similares que haviam instalado na Turquia. Comprometeram-se, ainda, a nunca mais realizarem ou estimularem invasões de Cuba, como a que a CIA e exilados cubanos haviam tentado em abril daquele ano na Baía dos Porcos. Eram estes os acontecimentos que haviam motivado os soviéticos a exibirem também o muque.

Krushev, por sua vez, ordenou o desmantelamento dos silos e a retirada dos mísseis, saindo do episódio com uma vitória real (obtivera as contrapartidas desejadas) e uma derrota propagandística, pois concordou em manter secretas as cláusulas que lhe eram favoráveis.

De quebra, as superpotências decidiram colaborar para que novos sobressaltos fossem evitados, tendo sido instalada uma ligação telefônica direta (o famoso telefone vermelho) entre Kennedy e Kruschev, para que se entendessem antes dos pequenos problemas virarem grandes crises.

Nos EUA e em grandes capitais européias, houve júbilo incontido. Cidadãos festejavam nas praças e parques, lotavam os bares. Casais redescobriram a atração sexual, estranhos iam para a cama depois de trocarem duas palavras (o número de crianças nascidas nove meses depois foi muito superior ao habitual...).

A explosão de vida sucedeu aos augúrios de morte. Emblematicamente, a música até então ignorada de quatro jovens de Liverpool decolaria para a consagração mundial, tornando-se a trilha sonora da maior revolução de costumes que o mundo já vivenciou.

A ARTE
Síndrome da China (1979 - d. James Bridges)
Ao fazerem uma reportagem em usina nuclear da Califórnia, a repórter de TV Kimberly Wells (Jane Fonda) e o cinegrafista Richard Adams (Michael Douglas) suspeitam de que presenciaram uma ameaça de vazamento nuclear.

A emissora é pressionada para não colocar a matéria no ar, mas a dupla insiste na pauta e acaba descobrindo que houve mesmo um início de descontrole, encoberto pela usina por temer uma vistoria que a obrigue a fechar para reparos, com enorme prejuízo.

O honesto engenheiro Jack Godell (Jack Lemmon) decide priorizar a segurança da coletividade em detrimento dos patrões, esforçando-se para alertar a opinião pública do enorme risco existente, com a ajuda da equipe de TV.


Acaba se trancando numa sala de controle, armado, para impedir que recoloquem a usina em operação sem terem sanado o problema. É morto, mas seu alerta vai ao encontro de novo incidente, em que quase ocorre o pior, desta vez diante das câmaras de várias redes de TV.

A VIDA
Three Mile Island (1979) e Chernobil (1986)
Se o desfecho sensato da crise dos mísseis cubanos fez diminuir consideravalmente a ameaça de uma guerra apocalíptica entre as superpotências, nem por isso a energia atômica deixou de provocar pesadelos e paranóias.

Em abril de 1986, um acidente nuclear na usina soviética de Chernobil, na Ucrânia, liberou uma nuvem de radioatividade que atingiria a URSS, Europa Oriental, Escandinávia e Reino Unido.

Grandes áreas da Ucrânia, Bielorrússia e Rússia foram muito contaminadas, expondo 6,6 milhões de pessoas e tornando necessárias a evacuação e reassentamento de aproximadamente 200 mil habitantes.

A ONU computou 56 mortes decorrentes do acidente na primeira década, estimando que outras 4 mil ainda viriam a ocorrer; o Greenpeace retrucou que esses números eram bem inferiores aos reais. A usina foi desativada.

Anteriormente, o acidente no reator de Three Mile Island já levara 140 mil moradores do condado de Dauphin, na Pensilvânia, a abandonarem a região.

Essa central nuclear sofreu fusão parcial em março de 1979, devido a falha do equipamento decorrente ao mau estado do sistema técnico, além de erro operacional. Tinha havido redução de custos, prejudicando a manutenção e troca de equipamentos. Os encarregados não se demonstraram suficientemente capacitados para lidar com a emergência.

O susto e os transtornos motivaram o lançamento de uma campanha contra a energia nuclear nos EUA: No Nukes, com a participação de músicos famosos como Jackson Browne, Bonnie Raitt e Graham Nash.

domingo, 18 de abril de 2010

OS CAFAJESTES E AS CAFAJESTADAS

Tomei conhecimento com algum atraso da reparação recomendada pela Comissão de Anistia na última 4ª feira (14/04), em benefício da atriz Norma Bengell -- cuja concessão será ainda decidida pelo ministro da Justiça, a quem cabe acatar ou recusar tal sugestão.

Foi trazida à baila na comunidade Ditadura Militar do Orkut. E a munição do recórter foi um post de Lauro Jardim, um dos blogueiros da Veja.

Abaixo reproduzo a nota de Lauro Jardim e a resposta que coloquei no Orkut (postando-a, em seguida, como comentário, no blogue de LJ, para que ele tomasse conhecimento, já que não ataco ninguém pelas costas):

Norma Bengell ganha Bolsa Ditadura
A Comissão de Anistia reconheceu ontem a atriz e diretora de cinema Norma Bengell como anistiada política. No pedido, Bengell alegava ter sido perseguida durante a ditadura militar, o que a forçou a se exilar na França em 1971.

Segundo ela, sua atuação no filme
Os Cafajestes (1962), ao protaganizar a primeira cena de nu frontal do cinema brasileiro, foi fundamental para as dificuldades por que passou no regime de exceção – e para a declaração do órgão do Ministério da Justiça.Aos 75 anos, Norma ganhou direito a ter uma reparação econômica de 100 000 reais, a serem pagos em parcela única.

Com dinheiro Norma já se enrolou - sempre recursos públicos, ressalte-se. Norma chegou a ser acusada pelo TCU de desviar recursos do filme que dirigiu, O Guarani, para comprar um apartamento na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Em 1999, o Ministério da Cultura cobrou dela 4 milhões de reais por causa de irregularidades dos incentivos fiscais do filme.

Por Lauro Jardim
Obscurantistas de ontem e de hoje
É engraçada a leitura que se faz aqui de um caso como o da Norma Bengell.

Ela não foi a primeira atriz do cinema mundial a interpretar cena de nu frontal. Em países civilizados, isto não causava nenhuma comoção.

No Brasil que estava submetido ao obscurantismo e à mais crassa ignorância (por que responsabilizar a atriz, que apenas fez aquilo que o diretor mandou, e não a este ou aos produtores do filme?), a perseguição que ela sofreu foi tamanha e a insegurança era tanta que ela foi obrigada a seguir para o exílio.

Tratava-se do lado moralista no pior sentido, rançoso e medieval, da ditadura militar. Não só censurava as artes, como perseguia os atores.

Vide, p. ex., o vandalismo, as agressões e os ultrajes a que foi submetido o elenco do "Roda Viva", com a CUMPLICIDADE do regime.

O CCC não só barbarizava teatros, como matou pessoas, sem que nenhum de seus integrantes fosse jamais incomodado pela Polícia. E eram todos conhecidos e notórios, teria bastado uma ida ao Mackenzie para prenderem a maioria.

Enfim, a Norma Bengell sofreu mesmo danos morais, psicológicos e profissionais em decorrência de o Brasil estar submetido a uma ditadura. Foi estigmatizada, obrigada a deixar seu país e teve prejudicado o exercício de sua profissão.

Merece o que está recebendo: cem mil reais, em parcela única. Os transtornos e as perdas que ela sofreu justificam plenamente tal montante.

Até para que fique bem claro para os gorilas: sempre que violentarem os direitos dos cidadãos, gerarão direitos e vão aumentar as despesas do Erário.

Certos mesmos estavam os promotores que tentaram repassar aos ex-comandantes do DOI-Codi/SP a conta por tudo que o Estado foi obrigado a gastar indenizando as vítimas daquele execrável centro de torturas.

Por Celso Lungaretti

sábado, 17 de abril de 2010

CASO BATTISTI: O FRACASSO DE UMA ESCALADA AUTORITÁRIA

O Caso Battisti terminou em janeiro de 2009, quando o Governo brasileiro decidiu que havia motivos suficientes para conceder ao escritor italiano o direito de residir e trabalhar em nosso país.

Cumpriu o papel dos governos, que têm os meios e ferramentas para verificar, no exterior, quem persegue objetivos políticos e quem não passa de um bandido em pele de idealista.

O Judiciário não tem esses meios. Acabará se fiando, sempre, na palavra de governos interessados em repatriar pessoas, por motivos justos ou injustos.

Ou seja, a razão de estado tende a invariavelmente prevalecer sobre os direitos individuais, pois os juízes vão se basear nas sentenças condenatórias que têm em mãos e sua propensão é a de acreditarem na decisão tomada por seus congêneres do outro país. Seria a revogação, na prática, do instituto do refúgio.

Aqueles que descartam até a mera discussão da sentença italiana de Battisti são, curiosamente, os mesmos que contestam o entendimento cubano de que Orlando Zapata não passava de um preso comum. Um julgamento fraudado da Itália estaria acima de qualquer suspeita, mas as razões de Cuba são desconsideradas de pronto.

No entanto, salvo fazendo uma distinção apriorística, ideológica, entre os dois países, um Cezar Peluso da vida, a partir da documentação cubana e aplicando os mesmos critérios que utilizou no Caso Battisti, concluiria necessariamente que Orlando Zapata não passava de um mero delinquente.

Daí a pertinência da Lei do Refúgio brasileira, cujos procedimentos eram as mesmos dos de outras nações: governos estrangeiros pleiteiam a extradição ao Judiciário, mas, quando o Executivo concede o refúgio, tal pedido fica automaticamente prejudicado e é arquivado.

Pois o Governo brasileiro, sim, poderia inteirar-se das informações que não estão nos autos, concluindo, no hipotético exemplo dado acima, que os dois casos não receberam tratamento isento das autoridades das respectivas nações, configurando, ambos, perseguição política.

CONTORCIONISMO JURÍDICO

Estou falando apenas em tese, pois, entrando nas especificidades do Caso Battisti, tenho de reconhecer que, além de desinformação, houve tendenciosidade pura e simples.

Pois a sentença da Itália é de uma clareza cristalina, ao condenar Battisti por ações praticadas com o objetivo de subverter o Estado italiano, mediante o enquadramento em lei criada especificamente para combater a contestação armada dos ultras.

Então, o que houve aqui foi um verdadeiro contorcionismo jurídico: a sentença italiana estaria certa quanto à culpabilidade de Battisti em três homicídios e à autoria intelectual num quarto; mas estaria errada ao considerar política a motivação desses quatro assassinatos.

Como a motivação política excluiria de imediato a possibilidade de extradição, o governo da Itália a requereu com o subterfúgio de mascarar a própria sentença que sua Justiça lavrou.

E o ministro Cezar Peluso ousou, no seu relatório, omitir e não levar em consideração algo que, conforme destacou seu colega Marco Aurélio de Mello, era citado nada menos do que TRINTA E QUATRO vezes na sagrada sentença italiana...

Por que? Aqui vou usar a liberdade que tenho, como leigo e como escritor, de apontar as motivações que saltaram aos olhos mas não podem ser provadas, de Cezar Peluso:
  • conservador e reacionário convicto, ele gostaria que a contestação política fosse criminalizada de uma forma que não é compatível com nosso atual ordenamento jurídico;
  • então, na tentativa de impor uma derrota exemplar à esquerda, abrindo um precedente para a crucificação de outros contestadores aqui e alhures, ele tratou de mascarar a realidade do Caso Battisti.
E o fez, p. ex., fingindo ignorar sua escancarada motivação política; utilizando cálculos engenhosos para eludir que a sentença italiana já estava prescrita; e se recusando a verificar (como lhe foi pedido pela defesa) se a condenação se deu mesmo à revelia, tendo Cesare sido representado por advogados que utilizaram procurações falsificadas para se passar por seus defensores, enquanto o prejudicavam e favoreciam co-réus.

Desde o início eu denunciei este vezo, primeiramente em Gilmar Mendes, depois em Cezar Peluso: eles queriam contrabandear para o Brasil a rigidez que os EUA e outros países adotaram a partir do atentado contra o WTC, limitando direitos humanos a pretexto de combaterem o terrorismo.

E, não encontrando respaldo para sua escalada autoritária nem no Executivo nem no Legislativo, tiveram de tentar resolver tudo na esfera do Judiciário, utilizando o Caso Battisti como ariete para arrombar várias portas legais.

Só criaram o caos. Depois de praticamente usurparem do Executivo a prerrogativa de decidir refúgio, detonando lei e jurisprudência, acabaram sendo detidos por um ministro que os apoiava, mas recuou horrorizado ante os descalabros jurídicos que se sucediam, cada um mais grave do que o anterior.

E chegamos à paradoxal situação atual, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é chamado a decidir de novo o que seu governo já decidiu, soberanamente e com pleno direito de o fazer. Ou seja, o caso verdadeiramente acabou há mais de um ano, mas o STF lhe deu sobrevida artificial... para nada.

En passant, foi-se alongando a detenção arbitrária de quem jamais deveria ter sido preso no Brasil e há mais de três anos é mantido como nosso único preso político, para imensa vergonha de quantos juramos nunca mais deixar que o País incidisse nos abusos de 1964/85.

Não tenho dúvida de que a escalada autoritária será detida no fundamental: a derrota do linchamento togado de Cesare Battisti fará recuarem momentaneamente as forças do obscurantismo, que tentam exumar as práticas autoritárias não só do macartismo à italiana dos anos de chumbo, como das próprias ditaduras latinoamericanas.

É importante, entretanto, que os defensores dos direitos humanos e os cidadãos com espírito de justiça não se desmobilizem, continuando a defender os institutos do asilo político e do refúgio humanitário contra a sanha dos caçadores de bruxas.

Inclusive lutando para que, em casos futuros que tramitarem no STF, seja restabelecido o status quo ante, eliminando-se o samba do crioulo doido jurídico produzido pela primeira votação do julgamento do Caso Battisti, quando o Supremo resolveu apreciar um refúgio já concedido pelo Governo, ao invés de simplesmente arquivar o pedido de extradição, como sempre fizera .

sexta-feira, 16 de abril de 2010

16 DE ABRIL DE 1970

Júlio chega à praça Saens Peña às 6h38 do dia 16 de abril de 1970.

É uma fase de arbítrio e intolerância. Os partidos e organizações que ousaram pegar em armas para resistir à ditadura militar pagam um preço bem alto: as notícias de prisão e morte de militantes são praticamente diárias. Há indícios de melhora da situação econômica do País.

Ele veio de ônibus, calculando que daria tempo. Deu. O ponto com o Ivo e os dois simpatizantes está marcado para as 6h45.

Outro motivo para ter optado pelo ônibus é a certeza de que o coletivo estaria quase vazio nesse horário. Ótimo para quem precisa tomar cuidado com o revólver que traz na cintura, encoberto pela camisa folgada, que usa fora da calça.

Nesta manhã de quinta-feira Júlio não tem outros compromissos. Baterá um rápido papo com os simpatizantes que Ivo vai lhe passar e pronto! Estará livre para voltar ao quarto que aluga na casa de uma simpática velhinha do Rio Comprido (ótima cobertura, nada de fichas para preencher, nada que possa atrair atenções indesejáveis).

Para manter a fachada de vendedor, às vezes ele é obrigado a ficar matando tempo pela cidade mesmo quando não tem nenhuma tarefa da Organização para cumprir. Nesta semana, entretanto, ele disse à Dª Chica que ganhou alguns dias de folga.

Como os dois comandantes de unidades de combate foram convocados pelo Lamarca para uma reunião de emergência na área guerrilheira, não há muito para um comandante de Inteligência fazer.

Assim, Júlio tratou de arrumar uma desculpa para manter horários mais flexíveis. E, como vantagem adicional, pôde sair à paisana, sem o terno desconfortável para o clima carioca nem a pasta 007 em que costuma levar o seu .38 e uma caixa de balas.

Esteve com Ivo na véspera, num restaurante da avenida Nossa Senhora de Copacabana. Encaminharam algumas tarefas, discutiram novidades, fizeram avaliações políticas. Sempre bem informado, Ivo ajuda Júlio a montar suas análises da situação.

O jovem comandante dá alguns detalhes de bastidores que lhe foram transmitidos por outros aliados, Ivo diz o que sabe a respeito, trocam idéias, tecem conjeturas.

A conversa rendeu tanto que acabaram separando-se às 22h40, meio tarde para quem precisa manter-se a salvo das batidas policiais. Foi quando Ivo disse ter dois simpatizantes para passar:
— Eles trabalham numa estatal e têm informações interessantes para o teu setor. Mas só podem te encontrar bem cedinho, o expediente deles começa às 8.
Júlio, que detesta cair da cama, foi obrigado a aceitar o horário desagradável. Consolou-se com a idéia de que depois poderia voltar para seu quarto e dormir mais um pouco.

Chega sem cautela nenhuma, pois confia no jeitão tranqüilo e na experiência de Ivo, um renomado ginecologista beirando os 40 anos, que chegara até a ser candidato à Prefeitura por um pequeno partido. Simpático e bem relacionado, ele é uma verdadeira mina de aliados e simpatizantes para a Vanguarda Popular Revolucionária.

Nas terríveis condições da clandestinidade, os militantes tentam agarrar-se a pequenas ilusões, que os ajudam a manter a ilusão maior de que exista alguma segurança para eles. Se encararem a verdade — de que, a cada instante, estão sujeitos a serem presos, torturados e mortos —, acabarão enlouquecendo.

Assim, Júlio tem muito medo de cair num ponto com calouros na luta armada, mas confia quase cegamente nos veteranos — dentre os quais ele próprio se inclui, afinal já leva essa vida há um ano e a maioria não agüenta mais do que alguns meses.

Além disso, esteve com Ivo oito horas atrás. O que poderia acontecer ao bom doutor em tão curto espaço de tempo?

Se pressentisse algum perigo, Júlio teria ido de terno, com o braço para dentro e a arma já engatilhada na mão direita, oculta pelo paletó. É o que faz em pontos arriscados.

Até algumas semanas atrás, teria também uma cápsula de cianureto entre os dentes, pronta para ser rompida por uma mordida mais forte. Foi uma contribuição de simpatizantes da área de medicina, mas o primeiro quadro que preferiu a morte à tortura... sofreu apenas um ataque de diarréia que o debilitou ainda mais diante dos algozes. É que os aprendizes de feiticeiro ignoravam algum detalhe da fabricação do comprimido letal.

A notícia do fracasso chegou à Organização e os militantes mais queimados — aqueles com reais motivos para evitarem cair vivos — tiveram de voltar a conviver com seus temores, sem a opção de uma saída fácil e quase indolor.

O ponto é numa padaria da praça. Júlio olha para os lados antes de entrar, mas só por hábito. E começa a pedir um café no balcão, quando é violentamente agarrado por vários homens. Um o segura por trás, impedindo que mexa os braços. É arrastado para fora, desarmado, encapuzado e jogado no chão de um veículo. Percebe que seu pior pesadelo virou realidade.

Com as mãos algemadas para trás, o capuz apertado, a cara contra o chão, sente falta de ar. Alguém lhe segura a cabeça, forçando-a para baixo, de forma que fique bem oculto dos civis. Durante o trajeto, vai repassando na memória o que lera no panfleto Se Fores Preso, Companheiro, do experiente Carlos Marighella.

Lembra-se de que aconselhava o revolucionário a se comportar como um militar nas mãos do inimigo: dar só o nome (nem mesmo a patente poderia abrir). Mas, isso foi escrito em tempos distantes. Será possível manter agora essa atitude de desafio?

Um companheiro mandou do presídio uma descrição da sala de tortura, que disse ser envidraçada. Sugeriu que o preso se atirasse contra o vidro — o que ele próprio não fizera. Júlio pensa que é uma boa opção.

Isto, claro, se lhe derem chance. E se não lhe faltar coragem. A hora da verdade chegou e ele não tem certeza de como se comportará.

Quanto durou o trajeto? Quinze minutos? Vinte? Percebe que chegou num quartel, o motorista explica-se ao sentinela. Acesso permitido. O veículo pára e Júlio é retirado aos trambolhões. Tiram as algemas, mas mantêm o capuz. Sente que está numa espécie de recepção.
- Nome!
Resolve ficar calado. Que vantagem há em revelar um nome que está nos cartazes de Terroristas Assassinos Procurados? Imediatamente começaria a ser tratado como um peixe grande.
-Nome!

- Como você se chama, filho-da-puta?

- É, assim não vai. Leva ele logo pro pau.
Conduzem-no aos empurrões. Cai, levanta-se, tenta manter a dignidade. Finalmente tiram o capuz. Está numa sala repleta de homens fortes e mal-encarados. Procura os vidros contra os quais se atirar, mas não existe nenhum. As paredes são todas acolchoadas.

Mandam-no tirar a roupa. Fica imóvel, mas também não resiste quando lhe arrancam todas as peças. Sente-se inferiorizado e frágil diante dos brutamontes. Deixa que lhe envolvam os braços com tecido, amarrem com uma corda, coloquem um cabo de vassoura entre eles e as pernas e o icem. Fica pendurado sobre dois cavaletes, como um frango no grill das padarias.

Atam eletrodos nos dedos. Começam a girar a manivela de um telefone de campanha. Lentamente. Ele concentra todas as suas forças em não gritar. Não lhes dar esse prazer. Não mostrar fraqueza. Resistir.

De repente, o torturador acelera, gira bem depressa a maquininha. A sensação é terrível. Não consegue respirar. Sufoca. Quando o choque cessa, Júlio tenta absorver todo o ar que existe na sala. Mas, giram de novo. Param. Giram. Param.

Percebe que esses gritos animalescos estão saindo de sua garganta.

Socam-lhe o corpo, a cabeça. Mas são os choques que o abalam de verdade. A impressão de que morrerá sufocado, de que seu coração vai estourar.

Deixam que tome fôlego, perguntam-lhe o nome. Percebe que não agüentará, vai ter de mudar de atitude. Precisa de tempo para pensar. Diz o nome.
- Tá mentindo, piroca! Fala a verdade! Como se chama? (outra descarga)

- (ofegando) Sou eu mesmo! O dos cartazes!
Vão digerir a informação. Tiram-no do pau-de-arara, mandam ficar em pé, com o rosto contra a parede. Deixam que amarre de qualquer jeito a calça e a camisa rasgada em torno do corpo.

Antes de dar-lhes as costas, vê os torturadores sorrindo, com ar de deboche. Odeia-se por não ter resistido mais.

Percebe que isso é só o começo, o pior está para vir.

Um grandalhão dá um tapa na sua nuca, depois tenta assustá-lo com o símbolo do Esquadrão da Morte. Com uma mão agarra-o pelos cabelos da nuca; com a outra, coloca bem diante dos seus olhos a caveira do ridículo anel que usa.
— Bem-vindo ao inferno!
A platéia estoura em gargalhadas.

À dor e vergonha vem se somar o desânimo. “Até quando terei de agüentar essa ralé?” — pensa Júlio. Sua impressão é de que realmente desceu ao inferno.

Esta é a introdução do meu livro
"Náufrago da Utopia" (Geração Editorial, 2005).
Quando meu pior pesadelo se materializou, há exatos 40 anos, eu só poderia supor que estivesse diante de três opções:

- sobreviver incólume;

- sobreviver lesionado;

- morrer.
Havia uma quarta, que nunca me ocorreria, sobreviver duplamente lesionado, fisica e moralmente.
No segundo caso, por haver caído numa armadilha da História, em que me debateria pelos 34 anos seguintes.
Mas, somos mesmo joguetes dos deuses.
Quando já me conformava com a idéia de que a verdade a meu respeito só viria à tona -- se viesse --, após a morte, uma sequência de acontecimentos favoráveis alterou todo o cenário, no final de 2004.
Como se os fados quisessem me compensar pela maré de azar que quase me destruíra em 1970.
Então, 40 anos depois, os efeitos daquele terrível 16 de abril (e dos meses seguintes) estão superados. Vivo uma nova vida -- aquela que deveria ter vivido.
Related Posts with Thumbnails